31 de agosto de 2017

TRADUÇÕES: (4)

Rosebud, fragmentos de biografias, de 2009
de Pierre Assouline, escritor francês, nascido em Casablanca, em 1953, jornalista, cronista, biógrafo, romancista.
Editado pela Bertrand, com tradução minha e da Helena, minha mulher, um livro que mal olhei para ele, lhe li o título, me fez recordar o filme, Citizen Kane, de Orson Welles, que entre nós se chamou, O mundo a seus pés. Certo é que não foi o mundo que Kane (Orson Welles) teve a seus pés, mas sim os verdadeiros amantes da arte cinematográfica. Mas porquê tal recordação? Porque Rosebud  foi a última palavra pronunciada pelo magnata da imprensa americana Charles Foster Kane, ao morrer. E qual é o significado dessa palavra? Que esconde ela?  Direi apenas que é algo, ou a imagem de algo, que pode ser tudo, real ou irreal, um sólido, uma gota de água, uma nuvem, algo bonito ou feio, grande ou pequeno, duro ou macio, agradável ou execrável, que um dia nos assombra e para sempre nos condiciona, o cérebro a alma, obrigando-nos a não esquecer o que se perdeu para sempre, o que nunca se conseguiu encontrar. Veja-se o filme!  
Pierre Assouline viu o filme e por causa dele tornou-se um biógrafo, um investigador. O seu livro é, pois, o relato das suas buscas para encontrar o rosebud que cada um dos seus biografados, consciente ou inconscientemente, esconde. E eles são: Rudyard Kipling, escritor,  Henri Cartier-Bresson, fotógrafo, Paul Celan, poeta,  Jean Moulin, político,  Lady Diana Spencer, princesa, Picasso, pintor,  Pierre Bonnard, pintor..
Bem ou mal, penso, não será rosebud  (botão de rosa, em português), apenas, a nossa consciência?

30 de agosto de 2017

TRADUÇÕES: (3)

Manual do Estudante Eficiente, de 1993
de Francisco José Montes
Última tradução das seis que fiz para Livros Horizonte, que, confesso foi a que menos me seduziu..  O autor, madrileno, é doutorado em Comunicação Social e licenciado em  Ciências da Imagem, estudou na Escola Técnica Superior de Engenheiros de Telecomunicações, leccionou na Faculdade
de Ciências da Informação e no Instituto Oficial de Rádio e Televisão, e foi director técnico da Universidade Nacional de Educação à Distância. Um currículo de peso que, pode-se deduzir, o capacitou a escrever um manual, sobre as diversas técnicas e métodos de que o estudante, que opta pela cábula em vez do estudo, se pode servir, para tentar obter êxito nos exames e alcançar um grau académico. Um livro de humor cínico, bem ilustrado, que, o autor o diz, tem por objectivo contribuir para um melhor entendimento entre professores e alunos, distraindo-os e divertindo-os. 
Pergunto a mim próprio se, na realidade, este manual, a sua leitura, terá levado a alguma aproximação entre professores e alunos? Que divertiu uns e zangou e envergonhou outros, julgo que sim.

29 de agosto de 2017

TRADUÇÕES: (2)

Cartas de Lisboa, 1822, de 1990
de José Pechio
Lisboa, Mítica e Literária, de 1990
de Ángel Crespo
Da mesma colecção, Cidade de Lisboa, de Livros Horizonte, a ambos traduzi e, para deles dar nota, aqui, a ambos os livros reuni.
José Pechio (1785-1835), italiano, nascido em Milão, doutor em Jurisprudência pela Universidade de Pavia,  escritor sempre atento à realidade política, social, económica da sua época, um político paladino da liberdade, solidário com os povos que por ela lutavam, que esteve exilado em Lisboa, durante três meses, de 24 de Fevereiro a a 25 de Maio, no ano de 1822, donde escreveu 11 cartas à sua amiga Jenny, Lady O, falando de Lisboa, capital de um país ainda traumatizado pelas invasões francesas, saída de um período revolucionário, uma cidade suja, inculta, atrasada, mas habitada por um povo, acolhedor, simpático, corajoso e bonito.
Ángel Crespo, espanhol, nascido em La Mancha, no ano de 1926, escritor, tradutor, poeta, ensaísta, profundo conhecedor da literatura portuguesa, em particular de Fernando Pessoa, sobre cuja obra teceu cinco ensaios, autor do livro, aqui em questão, sobre a sua amada Lisboa, mágica, histórica, velida, livro que merecia ser lido por todos os lisboetas, senão por todos os portugueses. Alguns já o terão feito. Oxalá!
Ángel Crespo veio a Lisboa para a apresentação do seu livro. Fui-lhe apresentado, solicitei-lhe um
autógrafo e ele teve a gentileza de escrever, desculpe-se-me a imodésta revelação: Para Manuel José Trindade Loureiro, co autor de este texto em una magnifica traductión portuguesa, com la admiración y el agradecimento de Ángel Crespo.
  

28 de agosto de 2017

TRADUÇÕES (1)

Espionagem e Contra-Espionagem numa Guerra Peninsular (1640-1668), de 1989 
Guerra e Pressão Militar nas Terras de Fronteira (1640-1668), de 1990
do professor Fernando Cortés Cortés, doutor em História Moderna pela Universidade da Estremadura.
História de Espanha, 1992
do historiador francês Pierre Vilar

Três livros, três traduções, que, a convite do meu amigo Rogério Moura, efectuei para a sua editora,  LIVROS HORIZONTE.
Entendi não ser despropositado juntar aqui os livros de um e do outro, do professor espanhol e do historiador francês. Os três falam da Península Ibérica, os dois primeiros do conflito entre os dois reinos, Castela e Portugal, o terceiro da Espanha, da sua história.
Pierre Vilar terminou de escrever a sua História de Espanha em 1946 pelo que a tradução aqui referida foi feita a partir das edições, francesa e espanhola, corrigidas e actualizadas, de 1986 e 1988. É uma História, concisa, de síntese, numa visão cronológica, desde o passado mais remoto, que se debruça com mais amplitude para os problemas sociais, económicos e políticos dos séculos XIX e XX, com  breves referências ao período em que se desenrolou a Guerra Peninsular, que para a historiografia espanhola é a Guerra de Sublevação Portuguesa e para nós é a Guerra de Restauração, que é praticamente ignorada.
Segundo o professor Cortés,  ele o explicita logo de início, a finalidade do seu primeiro livro é o conhecimento das actividades de espionagem e de contra espionagem dos exércitos castelhano e português frente a frente em meados do século XVII, durante um conflito que durou 28 anos e cujas consequências para as populações das terras da fronteira hispano-portuguesa, e não só: destruição,
ruína, miséria, despovoamento, são estudadas no segundo livro. 
Ao lê-los, por obrigatória necessidade, mas não a contra gosto, regressei à História, à de Portugal e  da Espanha, ao eterno confronto dos dois países, vizinhos, fronteiros, rivais, adversários, irmãos, eternamente ressentidos  um com o outro.














 

27 de agosto de 2017

ESCRITOS (8)

Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia Soviética
Bio-filmografia publicada no catálogo, CICLO DO CINEMA CLÁSSICO SOVIÉTICO, da Cinemateca Nacional, evento efectuado de parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987


Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia Soviética

I

               Aleksandr Piotrovitch Dovjenko, nome completo dum artista ucraniano, pintor, escritor, mas, principalmente, cineasta de grande prestígio.
               Não tendo sido, embora, o introdutor do cinema na Ucrânia, foi, na realidade, o pai do cinema ucraniano, que, verdadeiramente, nasceu com Zvenigora, cresceu com Arsenal e atingiu a maioridade com A terra.
               Dovjenko só cinematizou o que ele próprio escreveu e, para o cinema, ele só escreveu, sobre a Ucrânia, sobre a terra ucraniana, sobre o povo ucraniano. Nacionalismo extremo? De modo algum! Apenas honestidade de quem só fala do que conhece e sabe. Aliás, o discurso de Dovjenko foi sempre de total identificação com a pátria socialista e soviética e, por isso mesmo, ele foi também um dos mestres incontestados do cinema nascido da revolução.
             Dovjenko nasceu há noventa anos, no dia 11 de Setembro de 1894, em Sosnitsy, pequena aldeia ucraniana, marginal do rio Desna, na região de Tchernigov, filho de camponeses pobres e iletrados.
               Estudou as primeiras letras no colégio da sua aldeia natal, fez o secundário e frequentou a escola normal dos professores primários.
                 Isento do serviço militar devido à sua saúde delicada, salvou-se da mobilização de 1914.
               De 1914 a 1917 foi mestre escola em Jitomir e depois em Kiev. Nesta última cidade foi também, e simultaneamente, aluno da faculdade de Hi stória Natural e do Instituto de Economia Comercial.
               Ainda em Kiev, após a retirada dos polacos que a tinham ocupado em Maio de 1920, durante a guerra polaco-soviética que só veio a terminar em 18 de Março de 1921
com o tratado de Riga, Dovjenko participou na organização da secção de Kiev do Comissariado do Povo para a educação e foi secretário da direcção, dirigindo o sector urbano. Ao mesmo tempo tornou-se funcionário da administração local da educação popular.
            Em 1921 foi transferido para Kharkov, para prestar serviço no Comissariado do Povo dos Negócios Estrangeiros. Kharkov era na altura a capital da República Socialista Soviética da Ucrânia., fundada em 25 de Dezembro de 1917 por decisão do I Congresso Pan-Ucraniano dos Sovietes, em oposição à república proclamada em Kiev, em Novembro do mesmo ano, pela Rada Central, organização nacionalista da burguesia reaccionária.
                Integrado no corpo diplomático, foi enviado primeiro para Varsóvia e mais tarde para Berlim, onde trabalhou nos respectivos consulados durante cerca de dois anos.
             Em Berlim estudou pintura com o professor Heckel e quando, em fins de 1923, regressou a Kharkov, dedicou-se à pintura e ao desenho, tendo sido caricaturista e ilustrador do jornal Visi.
               Finalmente, em 1925, então com 31 anos, desgostoso com as fracas audiências que a pintura e o desenho pareciam atrair, não sabendo nada de cinema, mas obcecado com as imagens animadas vistas, ocasionalmente, abandonou tudo e todos, inclusivamente, a casa onde vivia, e partiu para Odessa.                                                              
   A reorganização do cinema na Ucrânia após a revolução, a guerra civil e a intervenção estrangeira, passou pela criação, em 1922, da Direcção Pan-ucraniana da Fotografia e do Cinema, VUFKU, que construíra em Odessa, uma pequena cidade onde funcionava o centro da actividade cinematográfica. Dovjenko não teve dificuldade em ser admitido no seio dos trabalhadores de cinema e, em 1926, pela primeira vez, inscreveu o seu nome num filme, como argumentista. Uma comédia intitulada, Vassia o reformador, que se estreou a 17 de Julho. E ainda nesse ano, em Ialta, já como realizador, filmou uma segunda comédia, também escrita por si, chamada, O pequeno fruto do amor. Dois pequenos filmes que ele não incluiu na sua filmografia, o que já não aconteceu com o terceiro, A mala do correio diplomático, onde pela primeira e única vez figura entre os intérpretes, um filme de aventuras, baseado num acontecimento verídico.
               Finalmente, a sua quarta realização, Zvenigora, que ele sempre considerou ser, verdadeiramente, a sua primeira obra, e sobre a qual declarou: Zvenigora permitiu-me julgar da minha capacidade de fazer filmes… Foi o catálogo de todas as minhas possibilidades de criador. Estreou-se em Kiev, no dia 13 de Abril de 1928, e em Moscovo, no dia 8 do mês seguinte, e para a qual a VUFKU, insegura quanto a um filme que ninguém parecia compreender, convidou Eisenstein e Pudovkine, cuja autoridade no campo cinematográfico era já incontestável. Ambos assistiram à projecção e foram apresentados  àquele realizador desconhecido. Eisenstein, mais tarde, escreveu um artigo sobre o acontecimento, que intitulou, O nascimento de um génio.
                   Zvenigora é a história da Ucrânia, desde os tempos mais remotos até à revolução, concebida numa sucessão de episódios, ora fantásticos ora realistas, repletos de símbolos, alegorias e de pistas. Filme de difícil leitura para quem não conhecesse, profundamente, a história do país, mas que a todos se impunha pelo fascínio da sua poesia, do seu lirismo, pelo seu sopro épico, e muito também pela sua excentricidade, qualidades que, em maior ou menor grau, irão estar sempre presentes nas obras de Dovjenko.
               Nesse ano de 1928, conheceu e casou com a actriz Iulia Solntseva que se estreara no cinema em 1924 como protagonista do filme Aelita, baseado no romance homónimo de Alexei Tolstoi, realizado por Iakov Protazanov. A íntima e profunda colaboração entre ambos vai durar toda a vida do artista e prolongar-se-à, mesmo, para além dela, pois será Iulia Solntseva que já depois da morte de Dovjenko, irá dirigir as filmagens dos três últimos argumentos que ele escreveu e preparou: O poema do mar (1958), Crónica dos anos de fogo (1961) e O Desna encantado (1963).
               A sua quinta realização, Arsenal, de 1929, é um poema sobre a revolução na Ucrânia. O principal personagem do filme é o já conhecido, Timoch, o jovem camponês de Zvenigora. Timoch, que se tornou guarda vermelho, esteve na guerra de 1914, e que em Janeiro de 1918 é operário e encabeça a greve e insurreição no estaleiro fabril do Arsenal, em Kiev. A história dessa greve e dessa insurreição afogadas em sangue, é o principal episódio do filme. Os operários são chacinados, mas já nada nem ninguém travará a revolução. Simbolicamente, Timoch, dando o peito descoberto às forças da repressão, será baleado repetidamente, mas mantém-se de pé, invulnerável, invencível, vivo.
Tendo-se estreado em 25 de Fevereiro, em Kiev, e em 26 de Março, em Moscovo,  Arsenal  suportou  bem  as  reticências  de  alguns críticos e ganhou, sem s favores do público. Com ele Dovjenko confirmou todas as esperanças que fizera nascer com Zvenigora.                                                                                                                                              
Filho do campo e filho extremoso, Dovjenko não podia ignorar a colectivização das terras ucranianas e foi ela o tema do seu sexto filme, A terra, realizado em Kiev e nessa mesma cidade estreado, no dia 8 de Abril de 1930.
               A terra, que foi o seu último filme mudo, é geralmente considerado a sua melhor obra e uma indiscutível obra-prima, muito embora, também ele, dentro e fora do país, não escapasse às críticas e incompreensões dos que sobrepunham a retórica política e ideológica à arte, e Dovjenko tenha sido acusado de idealismo e até de terrorismo.
               O jovem camponês Timoch de Zvenigora, que depois de ter sido soldado virara operário em Arsenal, chama-se em A terra, Vassili, trabalha no campo e é tractorista. O mesmo actor, Semione Svachenko, desempenha essas personagens nos três filmes e, certamente, não por acaso. Camponês, soldado, operário, tantos e um só: o jovem revolucionário ucraniano que luta, até à morte, pela vida e felicidade do seu povo e da sua pátria, no campo de batalha, na fábrica, no kolkhos.
               É na organização de um kolkhos, na sua aldeia, que Vassili trabalha afincadamente até à sua morte, assassinado a tiro por um kulak, e é a emoção e indignação que a tragédia provoca, que irá despertar os aldeões e empurrá-los, definitivamente, para a vida colectiva.
               A morte é um tema muito constante e de muito peso nos filmes de Dovjenko. Mas ela, na sua inevitabilidade, nunca é apresentada como um fim, mas, pelo contrário, anuncia sempre a vinda de algo de novo e de melhor.
               Num artigo necrológico sobre Dovjenko, da autoria de Ivor Montagu, publicado na revista Sight and Sound, no verão de 1957, diz o crítico com muita propriedade: Os mortos cobrem os filmes de Dovjenko. Nunca outro artista em qualquer arte, soube tão bem dilacerar os nossos corações. Mas, em Dovjenko, nenhuma morte é fútil.
               Com, A terra, encerra-se a primeira fase da actividade cinematográfica de Aleksandr Dovjenko.

II

               Em 1931, em viajem pela Europa, acompanhado pela mulher, Dovjenko, com o seu último filme na bagagem, apresentou A terra, em Paris, Londres, Berlim, Praga.
O sucesso foi incontestável, com a fita a ser unanimemente aplaudida, embora a nível do grande público a aceitação tenha sido claramente limitada pelo advento do sonoro.
               Já após o falecimento de Dovjenko, em 1958, o filme teve a sua grande consagração ao ser considerado como um dos doze melhores de todos os tempos. À margem do Festival Internacional de Cinema que, nesse ano de 1958, decorreu em Bruxelas, durante a Exposição Universal, levada a efeito na capital belga, um júri de 117 historiadores e críticos ligados ao departamento internacional de pesquisa histórica cinematográfica, foi convidado a seleccionar e classificar os trinta melhores filmes de todos os tempos. O apuramento dos 117 boletins deu origem a uma lista de 609 títulos, da qual o comité organizador retirou e publicou os doze mais votados. Três eram soviéticos: O couraçado Potiomkine, de Serguei Eisenstein, o primeiro, A mãe, de Vsevolod Pudovkine, o oitavo, A Terra, o décimo.
               Durante os quatro meses e meio que esteve no estrangeiro, Dovjenko teve ocasião de expor e discutir os princípios que norteavam o seu cinema. O resumo que deles deu, em Paris, à Revue du Cinema, transcreve-os Jay Leyda no seu Kino-Histoire du Cinema Russe e Soviétique: "Não é a história quem interessa. Considero-a apenas como   

o meio mais eficaz de exprimir e de pintar formas sociais importantes. É por isso que trabalho com documentos típicos, aplicando o método de síntese. Os meus heróis, e o seu comportamento são representativos da classe          
a que pertencem. Por vezes a documentação dos meus filmes está concentrada em alto grau e ao mesmo tempo, faço--a passar pelo prisma da emoção que lhe dá vida e, por vezes, eloquência. Não posso ficar indiferente perante esses documentos. É necessário amar, ou odiar, muito e com força; sem isso uma obra fica seca e dogmática.
               Regressado à Ucrânia, Dovjenko pensava, para o seu primeiro filme sonoro, nma história passada no Ártico, nas regiões polares, que, no entanto, não teve aceitação. Os estúdios de Kiev propuseram-lhe, antes, um filme sobre a industrialização o que o levou a escrever um argumento cujo pano de fundo era a construção da barragem do Dniepr. O filme chamou-se, Ivane, e foi estreado em Moscovo, no dia 6 de Novembro de 1932, no âmbito das comemorações do 15º aniversário da Revolução de Outubro.
               O fio do cenário é extremamente simples, o jovem Ivane, camponês vigoroso, bem parecido e analfabeto, sai da sua aldeia e é recrutado para ir trabalhar na construção de um barragem onde vai ser instalada uma central hidro-eléctrica. Transformando-se, gradualmente, num operário, Ivane vai tomando consciência da sua ignorância e resolve dedicar-se ao estudo, para assim vir a ser, verdadeiramente, senhor do seu destino. Ivane é assim o símbolo de todo o povo, o povo soviético, a lutar e trabalhar pelo seu futuro. Mas a narrativa fílmica saiu complexa e difícil de seguir, muito ao estilo habitual de Dovjenko: despreocupação no desenvolvimento do enredo básico, com muitos cortes, interrupções e desvios, com episódios que, aparentemente, mas só aparentemente, nada têm com a acção principal, e grande relevo dado ao movimento das grandes ideias e à dinâmica dos processos sociais, através de cenas exteriores de grande amplitude e beleza.
               O filme foi considerado um falhanço e criticado com alguma incompreensão, o que levou Dovjenko a virar as costas ao mau ambiente que o rodeava em Kiev, e a abalar para Moscovo, trocando a Ukraniafilm pela Mosfilm.
               Aos estúdios moscovitas Dovjenko começou por propor a realização de um filme sobre o Tsar, uma tragicomédia sobre a agonia do tsarismo russo, a degeneração da família Romanov e as intrigas da corte imperial, mas a proposta não teve acolhimento. A alternativa que lhe foi oferecida, uma fita sobre a 1ª Grande Guerra, foi por sua vez recusada. Mais tarde nasceu a ideia de um filme sobre a Sibéria, baseado num cenário escrito por Aleksandr Fadeiev, que Dovjenko comentou com Vichnevski com quem, entretanto, estabelecera traços de amizade. Avançou com a ideia, mas para a fazer vingar viu-se na necessidade de recorrer ao próprio Estaline, a quem escreveu, que o chamou ao Kremlin, ouviu-lhe a exposição e deu o seu acordo ao projecto siberiano.
               Partiu para o Extremo Oriente, em Setembro de 1933, e por lá andou durante cerca de quatro meses. O material recolhido levou-o a repensar todo o cenário e a desistir de Fadeiev. Regressado a Moscovo escreveu em dois meses e meio o argumento de, Aerograd. O oriente, belo, exótico e rico, era também um dos pontos mais vulneráveis da União Soviética. A memória da guerra com o Japão ainda estava muito viva, Vladivostok só fora libertada em 1922, e os japoneses ocupavam agora a Manchúria, a ser transformada em base militar de agressão. 
               Dovjenko pensava e, expressamente, o declarou no encontro nacional dos cineastas, em 1935, que haveria guerra, dentro de poucos anos, e que era necessário preparar as armas para a batalha. Aerograd, estava na linha dos filme chamados de defesa. Ele tinha de retratar não o oriente de ontem ou de hoje, mas o de amanhã. E assim foi concebido e assim nasceu, repleto de sonhos, avisos e pressentimentos. A cidade utopia, a cidade aérea do futuro  a construir no deserto siberiano.            
               A estreia verificou-se a 6 de Novembro de 1935. Polémico como vinham sendo todos os seus filmes, provocou o tipo de reacções contraditórias que, de nenhum modo, desagradavam a Dovjenko. Ele, aliás, sentia-se agora muito mais seguro com o seu prestígio bem firmado, após ter sido agraciado com a Ordem de Lenine, em Fevereiro desse ano, em sessão do Soviete Supremo dedicada aos trabalhadores de cinema. Nesse dia ficou determinado qual seria o seu futuro filme, quando Estaline mostrou interesse por um Tchapaiev ucraniano e lhe sugeriu o nome de Chtchors.
               A recolha de material começou ainda durante as filmagens de Aerogard. Ele começou por desejar que Vichnevski, escritor de temas militares, escrevesse o cenário, para mais, tendo tomado parte na guerra civil da Ucrânia. Mas, como sempre, acabou por querer ser ele próprio a fazê-lo. Regressou a Kiev, aos estúdios Ukraniafilm, mas agora com uma autoridade que antes não tinha, como director artístico, impondo a sua personalidade e as suas convicções, atencioso para quem tinha talento, intolerante para quem o não tinha ou para quem o cinema era apenas um modo de ganhar dinheiro.
               Chtchors foi um parto deveras difícil. Toda a gente parecia saber melhor do que ninguém o que o filme devia e não devia ser, inclusive o próprio Estaline, inicialmente extremamente aberto, mais tarde perigosamente desconfiado. Mas Dovjenko, que fez, desfez e refez o cenário que levou onze meses a escrever, e que prolongou as filmagens por vinte meses, resistiu às pressões, até ao medo de ter sido acusado de conspirador nacionalista. O seu Nikolai Chtchors, herói ucraniano, chefe dos guerrilheiros que lutaram contra os ocupantes alemães e os traidores da Petliura, não foi deturpado ou desumanizado, muito embora se lhe possa apontar o ser, por vezes, demasiado positivo.
               Chtchors é um filme extremamente bem construído, coerente, sentido, sem devaneios ou inúteis desvios, por vezes romântico, por vezes lírico, quase sempre épico, com uma portentosa sequência inicial, absolutamente antológica do cinema dovjenkiano. Uma obra prima do realismo socialista, um clássico do cinema soviético.
               Estreou-se no dia 1 de Abril de 1939, em Kiev, e no dia 1 de Maio desse mesmo ano, em Moscovo. Foi a última realização de Dovjenko antes do desencadear da guerra.

III

               Na madrugada do dia 1 de Setembro de 1939, às 4h.45m, as tropas da Alemanha Nazi invadiram a Polónia. Começava, assim, a II Grande Guerra Mundial, que só terminaria seis intermináveis e terríveis anos mais tarde.
               Dirigida por um governo reaccionário, encostado a um exército afastado do povo, a Polónia estava praticamente vencida em meados desse mesmo mês, apesar do indesmentível, heroísmo, coragem e capacidade de resistência bem demonstrada por algumas unidades militares e pela população civil.
               Perante o avanço impetuoso e ameaçador dos invasores alemães, o exército soviético, em defesa das fronteiras do seu próprio país e salvaguardadas regiões  e populações ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia que, após a guerra civil que sucedeu à revolução de Outubro, tinham ficado sob o domínio da burguesia capitalista e latifundiária polaca, invadiu, por sua vez, a Polónia e ocupou esses territórios. Hitler, apanhado de surpresa e ainda inseguro da sua força, aceitou, na altura, o inesperado revés.
               No mês seguinte, em Outubro de 1939, na Ucrânia Ocidental e na Bielorrússia Ocidental, realizaram-se eleições para as assembleias populares, as quais instauraram o poder dos sovietes e pediram a sua integração na URSS, passando a fazer parte dos povos soviéticos. 
                                                                                                                                                                                   
                A evocação de tais acontecimentos justifica-se pelo facto de Dovkenko, que os seguiu atentamente, se ter deslocado oficialmente à Ucrânia libertada e sobre eles ter realizado um documentário, a partir de um guião da sua autoria, que incidia principalmente na reunificação ucraniana. Ao filme que ele próprio montou, chamou-lhe  Libertação.
               Em 1940, Dovjenko anunciara no Izvestia de 1 de Junho, a sua intenção de realizar um filme sobre Tarass Bulba. A redacção do cenário, interrompida com a montagem de Libertação, terminou-a ele três semanas antes do traiçoeiro ataque dos alemães e o filme nunca chegou a ser rodado.
               O ataque das forças nazis verificou-se na madrugada do dia 22 de Junho de 1941. Na manhã desse dia, estupefactos, os soviéticos ouviram Molotov anunciar na rádio, a perfídia sem precedentes na história das nações civilizadas. O geral atordoamento em que ficou o país, não impeditivo embora da coragem e estoicismo com que foi resistindo ao inimigo, só verdadeiramente abrandou quando alguns dias depois, a 3 de Julho, Estaline, finalmente, se dirigiu aos seus concidadãos: Um grave perigo pesa sobre a nossa pátria… O exército e a marinha assim como todos os cidadãos devem defender cada palmo do território soviético, lutar até à última gota de sangue pelas nossas cidades e aldeias…
               Seguindo o exemplo de todas as camadas sociais e profissionais da população, os cineastas, na frente e na retaguarda, com maior ou menor continuidade, com mais ou menos dificuldades e perigos, cerraram fileiras, mobilizaram recursos, e ergueram uma cinematografia de guerra de grande eficácia, altamente vigorosa, fortemente mobilizadora e moralizante, não só no âmbito das actualidades e documentários, como nos filmes de ficção.        
               Devido à invasão os estúdios cinematográficos das zonas europeias foram evacuados para as repúblicas asiáticas. A Mosfilm e a Lenfilm instalaram-se em Alma-Ata e os estúdios ucranianos em Tachkent e Achkabad. Dovjenko não acompanhou a evacuação do estúdio de que era director artístico, recusando essa espécie de exílio, embora não ficasse em Kiev onde o seu apartamento foi saqueado e dinamitado. Conseguiu ir para a frente como correspondente de guerra, tendo-lhe sido dada a patente de coronel. Os seus artigos invadiram a pouco e pouco todos os jornais do país, relatando recuo das forças soviéticas, assim como, mais tarde, o volta-face, a desforra, a vitória.
               Os anos de guerra foram, para ele, de grande produção literária. Escreveu artigos, contos, novelas, peças de teatro, cenários de filmes. São desse período, para além de muitos outros textos: Alto, espera morte (1941), Ucrânia em chamas (1942), A noite antes da batalha (1942), A mãe Stoiane (1943), A vitória (1943), Mitchurine (1944) e Crónica dos anos de fogo (1945), sendo que estes dois últimos iriam dar origem a dois filmes.
               Termino Mitchurine. Quanto mais escrevo, mais penso sobre o que escrevi e mais gosto deste homem… identifico-me com ele, que me seja desculpada uma tal comparação. São palavras de Dovjenko, lançadas, em 22 de Novembro de 1944, no seu Diário, onde no ano seguinte, a 17 de Julho, escrevia: Li a "Crónica dos anos de fogo" no departamento dos cenários… deixou uma excelente impressão.
               O único estúdio de cinema que frequentou durante a guerra foi o Estúdio Central de Actualidades. Dele saíram os dois documentários de guerra que figuram na sua filmografia:  A luta  pela  nossa  Ucrânia  Soviética  (1943) e Vitória  na  Ucrânia e                                                                                                                            
expulsão dos alemães das fronteiras da Ucrânia Soviética (1945). São duas obras de responsabilidade colectiva, mas têm a sua marca e são o seu testemunho sobre a guerra.
Ele teve, aliás, ocasião, na altura, de falar sobre a sua experiência de documentarista: Precisávamos de planos que mostrassem a lama, o género de planos que os realizadores evitam, não sem discutir com os operadores. Só por si  essas imagens nada significavam, mas através da sua ligação enchiam-se de significado na medida em que queríamos mostrar os obstáculos com que a nossa ofensiva de 1944 deparou na margem esquerda ucraniana. Agora são acompanhadas de um comentário que recorda como esses espaços infinitos foram lavados com o sangue do nosso povo como os campos pelas chuvas primaveris como eles viram decidir-se o destino da humanidade, pois foi aqui que a arte militar alemã foi vencida, foi aqui que a libertação da Europa foi assegurada. Assim estes vastos lençóis de lama surgem-nos cheios de valor. Não temos nenhuma necessidade de ênfase para exprimir uma emoção profunda, o patético pode ser dado não por gritarias mas por documentos reunidos com arte e com sinceridade.

IV

               Terminada a guerra, Dovjenko instalou-se em Moscovo. Seu pai morrera  brutalizado pelos alemães, apesar da sua idade avançada, a mãe trouxe-a de Kiev onde a encontrara vivendo em condições infra-humanas. Restavam-lhe cerca de 11 anos de vida.
               Como foi possível que durante esse último período da sua existência só tivesse realizado um filme, Mitchurine? 
               Mitchurine foi, primeiro, uma peça de teatro intitula, A vida entre flores, cuja estreia se verificou em 1946. Do caderno de apontamentos deixado por Dovjenko, pode ler-se: 2-4-46. No dia 29 de Março li "A vida entre flores" na União de Escritores… Três horas de leitura. As pessoas escutaram como hipnotizadas. Somente no fim reparei como todas estavam excitadas e comovidas…. Aplaudiram-me largamente… Senti-me no entanto muito triste. Havia em tudo aquilo algo que se assemelhava a uma demonstração. As pessoas que estavam à minha frente… regozijavam-se porque eu não me tornara um impotente mental, um lacaio, porque eu não amaldiçoara o universo.
               Mitchurine, só depois foi um guião e, mais tarde, um filme, o seu primeiro e único filme a cores, e o seu último filme. Estreou-se no dia 1 de Janeiro de 1949, após uma rodagem iniciada em 1947 que deparou com imensos escolhos. A primeira versão, fundamentalmente lírica, recebeu críticas severas e deu origem a uma segunda versão, mais convencional, mais oficial, que, de certo modo, Dovjenko desprezou.
               Mitchurine é um filme biográfico, que foca a figura do agro-biólogo russo, Ivane Vladimirovitch Mitchurine (1855-1935) que, após a revolução de Outubro e graças ao que lhe foi concedido pelo governo, pôde dedicar toda a sua vida à investigação. As suas teorias foram, mais tarde retomadas, desenvolvidas e divulgadas por outro cientista, Trofime Demissovitch Lissenko, e foi a polémica que estalou à volta de Lissenko e dos seus trabalhos, dentro e fora da União Soviética, de cunho científico, mas também ideológico e político, que constituiu o factor altamente perturbador que tanto afectou a realização do filme, que de um momento para o outro se transformou no centro de preocupações e interesses que pouco ou nada tinham a ver com a arte cinematográfica.                                                                   
               Mitchurine saiu, pois, um filme desequilibrado, com sequências cuja beleza e pujança honram o seu autor e cenas intervalares que, por retóricas e vulgares,                                                                                                                         
denunciam a sua ausência e desinteresse. E se o filme saiu como saiu, Dovjenko, por seu lado, não saiu com uma imagem mais desanuviada do que aquela que já tinha. Leia-se, por exemplo, o que escreveu no seu caderno de apontamentos: 10-8-53. A perversidade de Béria, indiscutivelmente um fácies sinistro e repulsivo do nosso tempo. Recordo-me do seu rosto diabólico quando me chamou para um severo, terrível julgamento, a propósito de algumas frases infelizes, inexactas, que tinham sido insinuadas, segundo o próprio Estaline, no meu cenário "Ucrânia em chamas".
               Não admira, pois, que após Mitchurine, tenham sido recusados todos os seus projectos cinematográficos. Inclusive, um filme cuja realização, segundo parece, chegou a iniciar, foi interrompido e nunca chegou a ser visto: Adeus, América. Dedicou-se, então, ao ensino e à escrita.
               Entre 1950 e 1954, escreveu, pelo menos, três cenários: A abertura do Antártico, baseado no diário de Thadeus Bellinghausen (1819); Nos confins do cosmos, relato de uma viagem interplanetária; O Desna encantado, uma autobiografia da sua infância; e uma peça de teatro, Os descendentes dos Cossacos-Zaparogues. E foi mantendo em dia o seu caderno de apontamentos: Faço hoje sessenta anos… se sinto amargura? Não. O céu está puro e o ar transparente. Bendigo a vida grande e bela que me deu tais presentes. Hoje amo todos os homens. Amo o meu governo, amo o meu partido e trago comigo o seu significado, os seus fins, o seu dever perante o mundo. Com um amor fervente amo o povo do meu país. Muitas tempestades se apagaram do meu coração, só uma ficou para sempre, a paixão ética. E por isso bendigo o meu destino e a minha época.
               Finalmente, entre 1954 e 1956, iniciou a minuciosa preparação de um novo filme: O poema do mar. Naquela que foi a sua última entrevista, dada a Georges Sadoul, revelou que o filme era o último de uma trilogia, a história da construção de uma barragem cujas águas submergem uma aldeia. Começava, pois, pelo fim. A primeira parte decorreria em 1930, durante a colectivização. E a segunda trataria da resistência dos habitantes da aldeia face aos alemães durante a Grande Guerra.
               Na véspera do dia marcado para dar início à rodagem, o coração de Dovjenko deixou de bater. Era o dia 26 de Novembro de 1956.
               Não foi inesperada a crise cardíaca que o vitimou, pois o seu coração há muito que vinha falhando, mas a sua morte nem por isso deixou de ser amarga e dolorosamente sentida e chorada por todos os que conheciam e amavam o artista e, mais amplamente por todos os que conheciam e amavam a sua obra.
               Foi um crime lesa cinema o destino não lhe ter permitido a realização de O poema do mar. Muito embora a sua mulher, Iulia Solntseva, ao realizá-lo, tenha conseguido um belíssimo trabalho, de uma integral fidelidade à letra e ao espírito do autor, O poema do mar, de Dovjenko, ficou perdido para sempre.
               Iulia Solntseva realizou ainda duas outros obras de Dovjenko: Crónicas dos anos de fogo (1961) e Desna encantado (1963), numa linha de pensamento e acção sempre intransigentemente fiel à escola de Dovjenko. Foi uma das mais importantes homenagens à memória do artista, a juntar ao prémio Lenine, atribuído a título póstumo em 1959, e a determinação de dar aos estúdios de Kiev o nome de Aleksandr Dovjenko.
               Sonhei com a realização de uma retrospectiva integral da obra cinematográfica de Dovjenko. Foi apenas um sonho!









25 de agosto de 2017

BIBLIOTECA (7): a Marquise

Ela é o fim da linha, a última estação, término desta viagem descrita ao sabor da pena, sem preocupações de estilo ou de erudição. Apenas o prazer de falar do que se gosta, neste caso, de uma biblioteca e dos livros que a habitam.
Conhecia-a era ela ainda uma varanda aberta ao sol, ao vento e à chuva, é agora uma marquise  envidraçada, acolhedora, salvo em algumas noites mais geladas de inverno ou nos pinos de verão. É nela que se abriga a Literatura Portuguesa dos géneros policial e fantástico. Só a falta de espaço na Sala, e o elevado número de exemplares que assim podem ser classificados, não qualquer preconceito, levaram à opção, naturalmente discutível, de os separar dos que lá estão, mas divisão haveria sempre, qualquer que ela fosse. Aliás, basta recordar alguns dos autores e algumas das respectivas obras, para não haver quaisquer dúvidas sobre isso:

Agustina Bessa-Luís (Aquário e Sagitário),  Clara Pinto Correia (Adeus, princesa),  José Rodrigues Miguéis (Uma aventura inquietante),  Fernando Namora (Rio Triste),  Fernando Pessoa (Histórias  de um racionador e Quaresma decifrador),  José Cardoso Pires   (A balada da praia dos cães),
Jorge Reis (Matai-vos uns aos outros),  Hugo Santos (A morte do professor).

Mário Braga (O reino circular),  Álvaro do Carvalhal (Os canibais),  Natália Correia (Onde está o menino Jesus),  Mário-Henrique Leiria (Casos de direito galáctico  O mundo inquietante de Josela),  António José da Silva,o Judeu (O diabinho da mão furada)


BIBLIOTECA (6): o Escritório

Conheci-o com muitos outros nomes, mas este é o que lhe fica melhor, do que eu mais gosto. Será o último que lhe conhecerei, profetizo. A minha Teresa, a filha, teve a ideia de um dístico para pendurar na porta do dito: patries scriptorium
Ele, o escritório do pai, comporta, além das secretárias, das cadeiras e do computador, um recheio literário, de ficção, que abarca os seguintes países: África do Sul, Angola, Argélia, Cabo Verde, Camarões, Moçambique;  Argentina,  Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Cuba, EUA, México, Peru;  China, Índia, Líbano, Palestina, Quirguízia, Rússia, Tibete, Turquia, Vietname;  Austrália, e também,   á parte, livros de arte, cultura, filosofia e psicologia, portugueses e estrangeiros, e uma enciclopédia.
Alguns nomes para compor o ramalhete:
Luandino Vieira (Luuanda),  Mia Couto (Mar me quer),  Jorge Luís Borges (Fições),  Jorge Amado (Gabriela, cravo e canela),  Gabriel Garcia Marques (Cem anos de solidão),  Leonardo Padura (Hereges),  Hemingway (O velho e o mar),  Mário Vargas Llosa (A festa do chibo),  Arundhati Roy     (O deus das pequenas coisas),  Tchinghiz Aimatov (Djamília),  Lev Tolstoi (Guerra e Paz), etc,
e também:
Eduardo Loureço (O esplendor do caos),  Magalhães-Vilhena (O problema de Sócrates), António
Sérgio (Ensaios);  Kant (Crítica da razão pura),  Karl Marx (O Capital),  Platão (A República), etc.

23 de agosto de 2017

BIBLIOTECA (5): a Despensa

É a Despensa, que não se dispensa por tudo aquilo que é próprio ter, e tem, e por tudo aquilo que, não sendo costume ter, também tem. Ou seja, ela tem tudo, o que uma despensa não dispensa, e mais alguma coisa. Deixando para trás, o tudo, indispensável, eis o, mais alguma coisa, que nos ocupa:

- Livros de Gastronomia:


Avillez, José: As melhores receitas do ano (1915)
Avillez José: Receitas em grande
Carmo, Isabel: Saber emagrecer
Courtine: As receitas de Simenon e Maigret
Goucha, Manuel Luís: À mesa
Montalbán, Manuel Vasquez: Las receitas de Carvalho
Rosa-Limpo, Bertha: O livro de Pantagruel
Silva, Alexandre: 14 pratos regionais
Viana, António Manuel Couto e Ceferino Carrera: Comeres de Lisboa (roteiro gastronómico)


- Uma Colecção de Conchas Marinhas (na minha opinião, excelente) a justificar os livros que a apoiam:
Dance, S. Peter: Conchas
Hayward, P., T. Nelson-Smith et C. Shields: Guide des bords de mer
Lawrence, Eleanor e Sue Harniess: Conchas marinhas
Lindner, Gert: Guide des coquillages marins
Macedo, Maria C. Consolado, M. I. C. Macedo e J. Pedro Borges: Conchas Marinhas de Portugal
Silva, José António e Gil Montalverne: Iniciação à colecção de conchas
Wye, Keneth R.: The encyclopedia of shells
 
- Outros livros:
Teles, Américo: Guia prático de preparação de algas marinhas
Portugal Natural


 

ESCRITOS (5) e (6)

A Literatura Policial Moderna
e
Para a História da Literatura Policial Portuguesa que um dia alguém há-de escrever 

Dois dossiês com textos sobre temas do mesmo universo literário, o do género policial. Assim sendo, bem ou mal, decidi juntá-los nesta peregrinação aos meus escritos. Versões sobre a literatura policia, em geral, não faltarão, mas quis dar a minha própria, além de explicar o porquê de lhe ter chamado moderna. A panorâmica sobre a literatura policial portuguesa, é modesto um contributo para quem lhe quiser fazer a história.
Cada um dos dossiês tem o seu texto de apresentação pelo que, para não sobrecarregar a exposição,  preparei uma súmula dos dois, para aqui a trascrever.

                                                                  INTRODUÇÃO

O género literário a que se convencionou chamar policial, assenta em histórias que obedecem, ou devem obedecer, a três exigências: ter crime, ter mistério, ter investigação. O crime pode ser de sangue ou não, um homicídio, um roubo, um rapto, uma chantagem, mas deverá ser sempre, incondicionalmente, enigmático, ter enigma,  ter mistério, ser misterioso e, assim, obrigar, sempre, a uma investigação exigente, para ser desvendado – quem o cometeu, como, quando, onde e porquê – a cargo da polícia oficial ou, na eventual ausência inicial desta, de um detective profissional privado, de um investigador amador, ou, apenas, de um diletante. A satisfação destas exigências que, independentemente do rigor e da imaginação e diversidade com que são tratadas, caracterizam o género, depende, naturalmente, do talento, da vontade e das intenções do escritor.
A tais histórias, ingleses e americanos chamam-lhes detective stories, mas conforme os temas abordados e o desenvolvimento que lhes é dado, também as designam por thrillers ou crime stories. Os franceses, mais despreocupados, designam-nas, simplesmente, policiers, embora tenham tido também a ideia peregrina de lhes chamar polares. Nós, portugueses, solidariamente latinos, optámos também, sensatamente, por chamar-lhes, policiais ou policiárias

Segundo consenso, mais ou menos alargado, a literatura policial nasceu em meados do século XIX, mais precisamente em 1841, com a publicação de um pequeno romance, The murders in the rue Morgue (1), protagonizado por um investigador  diletante, o francês Auguste Dupin, imaginado pelo escritor norte-americano, Edgar Allan Pöe, embora o seu desenvolvimento só se tenha verificado, vinte anos mais tarde, graças ao escritor francês, Émile Gaboriau, criador dos inspectores Tabaret e Lecoq, da Sûreté, e a sua verdadeira consolidação, maturidade e geral aceitação, a partir dos finais dos anos 80, ainda do século XIX, se deva ao britânico, Conan Doyle, genial criador do mítico detective privado Sherlock Holmes e do seu amigo e biógrafo dr. Watson.
Não esquecer, no entanto, que já antes do nascimento desta literatura policial, subordinada à investigação dedutiva do mistério e do crime, existiam, e continuaram a existir, histórias sobre casos de perfil policial, embora de contornos, características, e objectivos diferentes: as grandes tragédias, os dramas de “faca e alguidar”, os intrincados confrontos entre a maldade e a moralidade, o macabro e o terror, com o sobrenatural à mistura, pelo que, com inteira propriedade, adjectivamos de moderna, a literatura policial.
De tais histórias que em maior ou menor grau, influenciaram a literatura policial de que foram predecessoras, o justo destaque vai para o livro, Mémoires de Vidoq (1828), de Eugéne-François Vidoq (1775-1857), dado o impacto das suas revelações sobre o mundo do crime.
Vidoq, indivíduo de maus princípios, com uma juventude dedicada ao banditismo, em 1809, aos 34 anos, resolveu mudar de campo, não de carácter, ofereceu-se para informador da polícia, e tão profícua foi a sua acção que, dois anos depois, foi nomeado chefe da Sûreté que dirigiu até 1827, e depois de 1931 a 1843, e em 1845, já reformado, abriu a primeira agência privada de detectives do mundo. 
Tendo-se relacionado com vários escritores, o seu livro de memórias, e ele próprio, a sua personalidade e os seus conhecimentos, inspiraram, entre outros, Alexandre Dumas, Eugène Sue, Victor Hugo e, principalmente, Honorè de Balzac com quem, em 1822, travou relações de amizade. Tornou-se, assim, o Vautrin de Le Pére Goriot, mas foi ele também, mais tarde, o modelo do Jackal de Les Mohicanos de Paris, do Rocambole, simultaneamente, do foragido Jean Valjean e do polícia Javert, de Les Misérables, e ainda, porque não, do Arsène Lupin.
E para além de Vidocq e das suas memórias, indispensável é registar, também,  obras e autores tão significativos como: The Castle of Otranto (1764), de Horace Walpole (1717-1797); The Mysteries of Udolpho (1794), de Ann Radcliffe (1764-1823); Caleb Williams (1794), de William Godwin (1756-1836); Ambrósio, or the Monk (1795), de Matthew Gregory Lewis (1775-1818); Ormond or The Secret Witness (1799), de Charles Brockden Brown (1771-1810); Der Kaliber (1829), de Adolf Mullner (1774-1829); Pelham ou Les Aventures d'un Gentleman (1828) e Eugen Aram (1832), de Edward Bulwer Litton (1803-1873); Ferragus (1833), Le Père Goriot (1835) e Une Ténèbreuse Affaire (1841), de Honoré de Balzac (1799-1850; Mémoires du Diable (1837), de Frédéric Soulié; The Avenger (1838), de Thomas de Quincey; Jack Sheppard (1839), de William Harrison Ainsworth.

          Em Portugal, a literatura policial, sem tradição, existiu, embora sem grande destaque ou qualidade. Os seus antecedentes foram as más traduções, quase sempre do francês, dos contos e romances góticos, e depois, influenciados por tais textos, o teatro de horror e a novelística negra. As primeiras obras, com características que já faziam adivinhar a futura ficção policial, detectam-se à volta do início da segunda metade do século XIX. Exemplos disso são: os dramalhões, Os dois renegados e O homem da máscara negra, ambos de 1839, de Mendes Leal (1818-1886); os romances Paulo, o montanhês (1853) e O génio do mal (1856/57), de Arnaldo Gama (1828-1865); Mistérios de Lisboa (1851) e A mão do finado (1853), de Alfredo Possolo Hogan (1830-1865); a peça O castigo da vingança (1862) e os contos, O punhal de Rosaura e Os  canibais, (1866), A febre do jogo, A vestal, Honra antiga e J. Moreno (1867), de Álvaro Carvalhal (1844-1868); e, porque não, Mistérios de Lisboa (1853) e Livro negro do Padre Dinis (1855), de Camilo Castelo Branco (1825-1890); assim como também, embora já algo afastado do perfil desse pequeno grupo, aquele que é considerado, com maior ou menor aceitação, o primeiro romance policial português:

O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA,
 Eça de Queiroz (Póvoa de Varzim, 25/11/1845 – Paris, 16/08/1900)
Ramalho Ortigão (Porto, 24/11/1836 – Lisboa, 27/09/1915)

          Foi publicado, em folhetins, no jornal, Diário de Notícias, de Lisboa, entre 24 de Julho e 27 de Setembro de 1870, surgindo, assim, vinte e nove anos depois de, nos Estados Unidos, precisamente em Abril de 1841, ter sido publicado aquele que marcou o início da literatura policial moderna, o já referido, Os crimes da rua Morgue.


   Ainda hoje há quem considere a literatura policial um género literário de segunda ordem. É um preconceito de quem insiste em esquecer que a qualidade de uma obra não depende do tema abordado, mas do rigor, da substância, da originalidade e qualidade com que o mesmo é apresentado, desenvolvido, aprofundado, e até enquadrado no contexto social. Mas reconheça-se que já são poucos os que se esquivam e se envergonham de ser apanhados a ler, ou apenas a ter na mão, um romance policial, e que quando o são se desdobram em justificações ridículas, pueris.
   Já Siegfried Kracauer, no seu tratado filosófico, Der Detektiv-Roman, composto entre 1922 e 1925, escrevia: “O romance policial que a maior parte das pessoas cultas conhecem como obra extra literária sem valor, levando uma existência confortável nas bibliotecas de empréstimo, conquistou progressivamente uma posição à qual dificilmente se pode contestar o seu grau e a sua importância” (2).
  Também Jorge Luís Borges, em 1978, numa sua conferência sobre o conto policial, interrogava: “Que poderíamos dizer como apologia do género policial?” e respondia: “Há uma muito evidente e acertada: a nossa literatura tende para o caótico. Tende-se para o verso livre porque é mais fácil que o verso regular, mas o contrário é que é verdade. Tende-se a suprimir personagens e argumentos; tudo é muito vago.Nesta nossa  época  tão  caótica,  algo  existe  que,  com  humildade,  conservou  as virtude  clássicas: o conto policial. Isto porque não se compreende um conto policial sem princípio, meio e fim. Têm-nos escrito escritores de segunda ordem, mas alguns saíram da pena de escritores excelentes, como Dickens, Stevenson e, sobretudo, Wilkie Collins. Eu diria, em defesa da novela policial, que ela não precisa que a defendam; lida presentemente com um certo desdém, vem salvando a ordem numa época de desordem. É uma coisa meritória e que lhe devemos agradecer” (3). 
    E Ernest Mandel, na introdução à sua história social do romance policial, Delightful Murder, de 1984, declarava: “Em primeiro lugar, devo confessar que gosto de ler romances policiais. Durante muito tempo pensei que eram um simples divertimento, uma evasão: quando lemos um não pensamos em mais nada e, assim que acabamos de o ler, deixamos de pensar nele. Mas este livrinho é em si próprio a prova de que essa maneira de ver é pelo menos incompleta” (4).
               Assim como o nosso Fernando Pessoa, num texto de reflexão pessoal, confessava: "Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aqueles em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo…" (5)

                                                                  NOTAS

(1) – Edgar Allan Pöe, Os crimes da rua Morgue, em Histórias de Mistério e Terror, Livraria Civilização, Porto, 1966.
(2) – Siegfried Kracauer, Le Roman Policier, un traité philosophique, Payot, Paris, 1981. 
(3) – Jorge Luís Borges, Borges, Oral, em Obras Completas, 4º volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1999.
(4) – Ernest Mandel, Cadáveres Esquisitos (uma história social do romance policial), Edições Cotovia, Lisboa, 1993.
(5) – Fernando Pessoa, Quaresma, decifrador, Assírio & Alvim, Obras de Fernando Pessdoa / 23, Lisboa, 2008.