14 de maio de 2020

Dos livros da minha vida (3)


Volto atrás, ao meu tempo de estudante liceal na Escola Pedro Nunes, onde o meu professor de História, foi Jorge Borges de Macedo. Foi, aliás, na Escola Pedro Nunes, que Jorge de Macedo começou a leccionar, salvo erro em 1945.  Recordo a primeira aula em que se nos apresentou. Excitado, nervoso, falava e andava de um lado para o outro de tal maneira que o ponteiro que brandia na mão se lhe escapou e saiu pela janela, caindo na rua, por sorte não atingindo ninguém pois ninguém ia passar. Nós gargalhámos e ele, correndo a espreitar, gemeu: Ó diabo!
Tivemos um bom relacionamento que superou o de simples professor/aluno, aluno/professor, visto que morávamos muito perto e saíamos e seguíamos muitas vezes juntos, para o almoço, no intervalo das aulas, e à tarde, no fim das mesmas. Muitas vezes o visitei, a seu convite, tendo conhecido a esposa e os três filhos. Nesses dias falávamos muito, ele principalmente, orientando, aconselhando, comentando, sobre o estudo, a escola, o país, os livros a ler, e não só os de estudo, até o cinema a ver. Foi, aliás, através dele que me fiz sócio do Círculo de Cinema, um cineclube cujas sessões se efetuavam aos domingos de manhã, às 11 horas, no teatro Capitólio, no Parque Mayer. O Círculo, que nunca conseguiu a sua legalização, acabou por ser proibido, depois da sua sede ser assaltada uma noite pela PIDE, que deteve quem lá estava. Safei-me de ser engavetado, por uma unha negra. Por vezes passava por lá, mas tinha saído meia hora antes do ataque.
E cá vou aos livros.  Foi ele que me deu a conhecer e ler, em edição brasileira, o emblemático “A Mãe”, de Máximo Gorki, o “O Don Tranquilo”, uma saga sobre o povo cossaco, e “Terras desbravadas”, sobre o coletivismo no Don, ambos de Mikhail Cholokhov, escritor que viria a obter o Nobel, em 1965, “pelo poder artístico e integridade com a qual no seu épico do Don conferia expansão a uma fase histórica da vida do povo russo”,  e me abriu o apetite para a literatura russa e soviética, embora eu já tivesse lido, da primeira, de Leão Tolstoi, “Infância” e “Adolescência”, ofertas aniversariantes do meu avô, e tivesse na estante, à minha espera, o monumental “Guerra e Paz”. Depois, ao longo do tempo, e também já por minha iniciativa, muitos outros, dos quais destaco, da segunda, que também é russa, mesmo não sendo, sei lá, os de maior valor literário, e tão tematicamente diferentes, mas sobremaneira me cativaram, empolgaram. “Margarita e o Mestre”, de Mikhail Bulgákov, e a trilogia, “Os vivos e os mortos”, “Não se nasce soldado”, O último verão”, de Konstantin Simonov.
Bulgákov, romancista, contista, dramaturgo, que não sendo um escritor de ficção científica não poucas vezes a ela recorreu, como também ao fantástico e ao diabólico, tornando mais ácidas e inquietantes as suas sátiras sociais. “Margarita e o Mestre” é, sem dúvida, uma sátira social, mas que engloba, igualmente, sátira política e alegoria religiosa. Um romance de humor negro que elogia a bondade e condena a cobardia, e que apela à compreensão do leitor para as peripécias, ora divertidas ora aterradoras, inesperadas, que o compõem. Um livro ,único, inclassificável, que o autor começou a escrever em 1928 e não mais largou até à sua morte em 1940, quatro semanas depois de ter preparado uma quarta versão. Só em 1973 foi publicada em Moscovo uma versão integral.
Konstantin Simonov, poeta, romancista, dramaturgo, correspondente de guerra, um dos mais galardoados escritores da literatura de ficção, sendo a trilogia que atrás citei, que abarca toda a guerra contra os invasores nazis, até à batalha de Berlim e à vitória final, uma obra de grande fôlego, implacável no traçar da brutalidade da guerra, minuciosa na descrição do perfil das personagens que a povoam: no carácter, nos sentimentos, na alma.  
A minha convicção da militância de esquerda do meu professor, só me foi revelada e confirmada quando sua mulher me veio avisar da sua detenção pela PIDE, e se eu tinha alguma coisa dele. Não tinha, mas fiquei bem apreensivo, mesmo assustado.
Depois do acontecido só voltámos a ver-nos mais duas vezes, espaçadas no tempo, meses a primeira, anos a segunda.  Um inesperado encontro num transporte público, no carro elétrico, talvez no 28, não estou certo, onde nos reconhecemos, cumprimentámos, mas quase nada conseguimos dizer um ao outro, até que, para mim sem propósito e entendimento, falando alto como se estivesse a dar uma aula, ele declarou a sua grande admiração por Winston Churchill. Ele era já outro, arrepiara caminho, mudara de crença, já não acreditava no que creditara, ou não estaria em liberdade. Eu, aliás, já há algum tempo o sabia. O segundo, em uma das sessões de um curso sobre literatura poética, promovido por David Mourão-Ferreira, a decorrer na SNAB. Ele estava lá, vi-o, mas ele não ou não quis, assim me pareceu. Mas a uma brevíssima intervenção minha, respondendo a uma pergunta lançada à assistência por Mourão-Ferreira, Borges de Macedo, com um meio sorriso e uma rápida olhadela na minha direção, levantou-se para, com algum calor, me contradizer. Ele, afinal, sempre me vira e reconhecera, estou certo. Não repliquei, não lhe fiz a vontade, para mim evidente, e o assunto morreu. 



1 comentário:

Diana disse...

Tinha entre 7 a 8 anos quando encontrei o Harry Potter. Para alguma pouca sorte do meu avô, que desde cedo me incutiu hábitos de boa leitura, o Harry Potter foi o primeiro livro que me apaixonou e me fez apaixonar por mais 7 livros (penso eu...) da mesma saga. A magia literal de cada livro sempre me fascinou. Apesar d’O Manojas ser um apaixonado por ficção científica e policiais, gostaria de acreditar que o Harry no seu mundo de fantasia e estilo Fantástico não estaria muito longe da aprovação dele. No entanto, ambos sabemos que o Manojas nunca foi (e nunca será) fã do Harry... o que foi (e ainda é) para mim um grande desgosto, embora compreensível. Por esse motivo, li todos os livros com uma suave amargura pelo desencontro que ambos encontrávamos no Harry.

Tinha entre 10 e 12 anos quando o mesmo Manojas me apresentou gentil e docemente à Agatha Christie e, em particular, ao Hercule Poirot, deixando-me dar os meus primeiros passos no seu adorado estilo policial. Se Hercule Poirot por escrito ainda hoje me vai encantando, foi também com curiosidade que conheci a série televisiva. Lembro-me da emoção e felicidade de chegar a casa dos Loureiros, entrar no quarto da esquerda do Hall e ter à disposição muitas temporadas do Hercule Poirot em DVD. Ainda hoje me recordo da música de introdução (muito misteriosa) de cada episódio... e trauteá-la ainda me traz de volta aos 12 anos de infância.

Também aos 10 anos descobri a saga Tin Tin escondida num pequeno quarto de arrumações do Manojas. A saga, de tão devorada que foi, ainda se vai mantendo firme e recordada na minha memória.

Aos 17 anos “roubei” um livro da mesa de cabeceira da minha mãe intitulado “Memórias das minhas putas tristes” de Gabriel Garcia Marquez. Não vou mentir: apenas me cativou o interesse pelo título mais libertino. Oh... que opôs os livros do Gabriel que se seguiram não tinham um título libertino mas apenas se tornou um dos meus autores favoritos. Já li mais 5 livros do Gabriel entretanto, obviamente incluído 100 anos de solidão e amor nos tempos de cólera.

Aos 22 descobri Tolstoi por influência e mão do pai que (finalmente) me começou a aconselhar algumas obras literárias. Apesar de guardar o “Guerra e Paz” para um verão que ainda não chegou, já uns quantos romances de Tolstoi me passaram pelas mãos e me apresentaram corretamente a outros autores russos. Depois de Tolstoi, Dostoyevsky e Pushkin já me foram encantando e apaixonando.

5 sagas, autores e momentos que me moldaram e criaram para hoje ser a leitora que sou. Muitos ainda por vir na minha breve experiência literária...