Fiz o meu
curso liceal não no liceu oficial, mas num colégio particular, na Escola Pedro
Nunes, não no liceu do mesmo nome. A escola era mais perto de casa, menos
agitada, mais controlável. Por razões que não vêm ao caso, eu era um infante
muito vigiado, os meus avós estavam sempre de olho em mim, na minha saúde. A
imposição foi logo que eu não podia jogar futebol, salvo, vá lá, a guarda-redes.
Uma seca!
O director
da escola era o dr. Castanheira, baixote, bastante redondo, firme, sério, bem
educado, bom republicano. Era ele que leccionava o Português e o Latim. Quando
para lá entrei, para o 1º ano, ainda era lá professor António Sérgio. Penso,
mas não juro, que a História e a Literatura eram com ele, mas, claro, para os
do 6º e 7º. Pensar que eu ainda o podia apanhar, era ilusório. Aliás, foi-se
embora no ano seguinte, afastado por impostas razões políticas. Vivia-se, então,
em plena ditadura salazarista, dura e aviltante, que não perdoava, e Sérgio era,
declaradamente, anti-regime. Mas ainda tive ocasião de assistir a uma palestra
sua, sobre Eça de Queiroz. Sendo sobre quem era e sendo quem era o orador, eu não a podia
perder. Fiz e fez-me bem.
E cá estou a
chegar aos livros, embora, confesso, quando iniciei esta segunda volta ao
passado, o meu objectivo não eram, para já, os romances queirozianos.
Eu já
começara a ler Eça, mas demasiado cedo e sem apoio, como viria a lamentar. Mas
eles estavam à minha inteira disposição, todos, na estante aberta do meu avô. E
não começara pela “A cidade e as serras”, o título não me atraíra, mas por “A Relíquia”,
uma 4ª edição de 1904, em que o autor, sarcástico e malicioso, nos descrevia,
através do próprio, as aventuras do jovem Teodorico, irrequieto e libidinoso, e
a tacanhez e beatices da sua Titi, a severa e intratável Dona Patrocínio. Algo confuso pelas inesperadas e surpreendentes
situações e apreciações relatadas, mas também divertido e muito curioso, avancei
de seguida para “O Primo Basílio”, e,
interdito e consternado, soube dos amores pecaminosos, adúlteros, do jovem
peralvilho Basílio, fútil, falso, irresponsável, e rico, com a ingénua, inocente
e imprevidente burguesinha Luisa, sua prima, e da revoltante chantagem da despeitada
e entediada Juliana, sua criada. Devia ter feito uma pausa, mas, como que atraído
pelo abismo, não resisti e bisbilhotei “O crime do Padre Amaro”, o seu assédio sôfrego,
consentido e desejado, à jovem e ansiosa Amélia, e as consequências trágicas daí
resultantes. E por aí me fiquei, enfim, inevitavelmente
chocado.
Ingénuo,
solitário, pouco vivido, pouco relacionado, metido comigo, eu que aceitara sem
esforço o romantismo crítico de Camilo, e me empenhara em seguir a sua linguagem
primorosa e invulgar, revelei não estar preparado para enfrentar o implacável realismo
de Eça, para entender as suas acutilantes e certeiras críticas à vida, à
sociedade portuguesa, de então.
Cresci, redimi-me,
e desculpei-me, a mim. Fosse como fosse, enfrentara, sem desistir, a fase em
que Eça terá sido mais duro e intencional nas descrições dos seus textos. Agradei-me, então, com “A cidade e as serras”,
“A ilustre casa de Ramires”, “O Conde de Abranhos”, a sua reconhecida obra-prima,
”Os Maias”, e não descurei, até, “A Tragédia da Rua das Flores”.
Ah, sim, depois
do assédio, do crime, do adultério e de tudo o mais, o incesto, mas dessa tardia
e trágica surpresa só o imprevisível e implacável destino era o responsável, ao
ter engendrado o inesperado encontro entre os dois irmãos que não se sabiam, a
Maria Eduarda e o Carlos Eduardo, mas que sendo quem eram, o que eram, e como
eram, naturalmente se sentiriam, como sentiram, atraídos um pelo outro.
E por agora,
é tudo, mas vou continuar.
2 comentários:
Óptimo. Resta esperar o próximo.
A Beatriz, neta, andou também na Escola Pedro Nunes, umas décadas depois.
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