10 de maio de 2020

Dos livros da minha vida (2)


Fiz o meu curso liceal não no liceu oficial, mas num colégio particular, na Escola Pedro Nunes, não no liceu do mesmo nome. A escola era mais perto de casa, menos agitada, mais controlável. Por razões que não vêm ao caso, eu era um infante muito vigiado, os meus avós estavam sempre de olho em mim, na minha saúde. A imposição foi logo que eu não podia jogar futebol, salvo, vá lá, a guarda-redes. Uma seca!
O director da escola era o dr. Castanheira, baixote, bastante redondo, firme, sério, bem educado, bom republicano. Era ele que leccionava o Português e o Latim. Quando para lá entrei, para o 1º ano, ainda era lá professor António Sérgio. Penso, mas não juro, que a História e a Literatura eram com ele, mas, claro, para os do 6º e 7º. Pensar que eu ainda o podia apanhar, era ilusório. Aliás, foi-se embora no ano seguinte, afastado por impostas razões políticas. Vivia-se, então, em plena ditadura salazarista, dura e aviltante, que não perdoava, e Sérgio era, declaradamente, anti-regime. Mas ainda tive ocasião de assistir a uma palestra sua, sobre Eça de Queiroz. Sendo sobre quem era e  sendo quem era o orador, eu não a podia perder. Fiz e fez-me bem.
E cá estou a chegar aos livros, embora, confesso, quando iniciei esta segunda volta ao passado, o meu objectivo não eram, para já, os romances queirozianos.
Eu já começara a ler Eça, mas demasiado cedo e sem apoio, como viria a lamentar. Mas eles estavam à minha inteira disposição, todos, na estante aberta do meu avô. E não começara pela “A cidade e as serras”, o título não me atraíra, mas por “A Relíquia”, uma 4ª edição de 1904, em que o autor, sarcástico e malicioso, nos descrevia, através do próprio, as aventuras do jovem Teodorico, irrequieto e libidinoso, e a tacanhez e beatices da sua Titi, a severa e intratável Dona Patrocínio.  Algo confuso pelas inesperadas e surpreendentes situações e apreciações relatadas, mas também divertido e muito curioso, avancei de seguida para  “O Primo Basílio”, e, interdito e consternado, soube dos amores pecaminosos, adúlteros, do jovem peralvilho Basílio, fútil, falso, irresponsável, e rico, com a ingénua, inocente e imprevidente burguesinha Luisa, sua prima, e da revoltante chantagem da despeitada e entediada Juliana, sua criada. Devia ter feito uma pausa, mas, como que atraído pelo abismo, não resisti e bisbilhotei “O crime do Padre Amaro”, o seu assédio sôfrego, consentido e desejado, à jovem e ansiosa Amélia, e as consequências trágicas daí  resultantes. E por aí me fiquei, enfim, inevitavelmente chocado.
Ingénuo, solitário, pouco vivido, pouco relacionado, metido comigo, eu que aceitara sem esforço o romantismo crítico de Camilo, e me empenhara em seguir a sua linguagem primorosa e invulgar, revelei não estar preparado para enfrentar o implacável realismo de Eça, para entender as suas acutilantes e certeiras críticas à vida, à sociedade portuguesa, de então.    
Cresci, redimi-me, e desculpei-me, a mim. Fosse como fosse, enfrentara, sem desistir, a fase em que Eça terá sido mais duro e intencional nas descrições dos seus textos.  Agradei-me, então, com “A cidade e as serras”, “A ilustre casa de Ramires”, “O Conde de Abranhos”, a sua reconhecida obra-prima, ”Os Maias”, e não descurei, até, “A Tragédia da Rua das Flores”.
Ah, sim, depois do assédio, do crime, do adultério e de tudo o mais, o incesto, mas dessa tardia e trágica surpresa só o imprevisível e implacável destino era o responsável, ao ter engendrado o inesperado encontro entre os dois irmãos que não se sabiam, a Maria Eduarda e o Carlos Eduardo, mas que sendo quem eram, o que eram, e como eram, naturalmente se sentiriam, como sentiram, atraídos um pelo outro.
E por agora, é tudo, mas vou continuar.

2 comentários:

Álvaro de Sousa Holstein disse...

Óptimo. Resta esperar o próximo.

Miss Lady disse...

A Beatriz, neta, andou também na Escola Pedro Nunes, umas décadas depois.