12 de fevereiro de 2021
MANOJAS: a divagar e recordar - 2
Não foi, Graças a Deus, que atingi e ultrapassei a barreira dos 90 anos, assim como não foi, Graças a Deus, que aos 6 anos já era órfão de pai e mãe. Sou cristão porque fui baptizado, mas, por convicção própria, não sou crente, nunca tendo sido pressionado pela família para o ser ou não. Respeito os que, convictamente, acreditam e têm fé no seu Deus, seja qual for a religião que professam: cristianismo, budismo, hinduísmo,islamismo, … PARAGRAFO. Quando eu era jovem, muito jovem, sei lá, talvez com os meus 11, 12 anos, sonhava muitas vezes com o ano 2000. Era para mim e, estou certo, para muita, muita gente, um ano mítico, um ano em que aconteceriam coisas extraordinárias, não o fim o mundo como alguns temiam, mas sim o início de uma era de grande desenvolvimento, de grandes descobertas, uma era de alegria e felicidade, e eu ansiava por lá chegar. Mas fazia contas e concluía, com desânimo, que só o atingiria se vivesse para lá da barreira dos setenta. E como lá conseguiria chegar, interrogava-me, se pertencia a uma família cujos membros, pais, avós, tios, pareciam destinados a morrer cedo. Ao fim e ao cabo não só alcancei o ano 2000 e o deixei para trás, como comprovei o que, aliás, já há muito sabia, ele era um ano igual aos outros e, bem vistas as coisas ou as contas, apesar dos muitos festejos em sua honra, nem era ele a virar o século. PARAGRAFO. Os camaradas e amigos, meus, da minha geração: da escola, do liceu, da faculdade, do bairro, dos cafés, dos bares, das casas das meninas, da jogatina, do futebol, do trabalho, já todos me abandonaram, mas, não sei porquê, sempre que penso neles, sinto-me traidor, não traído. Deixei-os ir, não os segurei, não fui com eles, fiquei-me por cá. Choro por eles, por todos eles. Cito os mais chegados, os mais íntimos: o Saraiva, o Simões, o Ferraz, o Palhinhas, o Cabral. Sempre nos tratámos pelos apelidos, raramente pelo primeiro nome, e, com uma excepção, por tu. Eu e o Cabral sempre nos tratámos por você, embora, curiosamente sem êxito, tivéssemos tentado o tu. Porquê? Tenho-me interrogado, e só encontro uma explicação: quando iniciámos a nossa amizade já não eramos uns rapazolas, ainda a crescer, a escolher, a formar, eramos homens feitos, casados, com filhos, as nossas mulheres tinham sido colegas liceais. Eramos de esquerda, tínhamos aspirações, opiniões, gostos, coincidentes. Era, foi sempre, uma amizade baseada na confiança, no respeito, na consideração, mútuos. Uma amizade pura, simples, adulta. PARAGRAFO. Escrever memórias não é, para o cidadão comum, uma prática muito habitual, mas quem embarca numa viagem ao passado, seja ou não personagem de relevo, normalmente só o faz, salvo casos de oportunismo mediático, quando se sente a viver a última fase da sua vida. É o que acontece comigo, que, disposto a divagar sobre algumas das recordações que contribuíram para a minha maneira de ser e de estar, de pensar, por pouco ou nenhum interesse que tenham para outros, que não para mim ou, julgo, para os meus, e tendo ultrapassado folgadamente a idade média de esperança de vida, sinto ser a altura de arrancar com elas. PARAGRAFO. Alguns dos dias mais giros da minha vida, passei-os, em casa do Ferraz, com a minha Helena e a Helena dele. Giros é o termo apropriado. Eu tinha comprado uma máquina de filmar de 8 mm e ele estava numa de fotógrafo semi-profissional. Propus-lhe fazer um pequeno filme, o que ele aceitou entusiasmado. Seria uma co-realização com argumento meu e fotografia dele. A história era simples, quatro tipos que se reuniam em casa de um deles, para batê-las, ou seja, para uma noitada de poker, a doer. Os quatro eram, um branco, um preto, um amarelo (um chinês), e um vermelho (um índio)., identificados através de máscaras de carnaval. O branco, uma máscara com um sorrisinho bem sacana, era o hospedeiro, e era ele, inevitavelmente, ou não fosse branco, que depenava os outros três. O estúdio foi a casa de jantar do Ferraz que a esvaziou, distribuindo os móveis pelas outras divisões. E durante dias e dias, à noite, reuníamo-nos para preparar cada cena, cada movimento, cada tomada de vista, para nos mascararmos e para filmar. Fervilhavam as ideias e as opiniões, nem sempre coincidentes e daí as discussões, por vezes acaloradas, e por fim as gargalhadas, a começar por elas, as Helenas. Inevitavelmente, a função terminava quase sempre a horas tardias, com bocejos, com lamentos já a pensar no próximo levantar da cama, mas nunca sem antes bebermos uma chávena de cacau, comermos umas bolachas e voltarmos rir das peripécias acontecidas. E fizemos o filme, deliciamo-nos a vê-lo, mostrámo-lo a familiares e amigos, deixámo-lo a andar de mão em mão, e perdemo-lo. Nunca onseguimos descobrir quem ficou com ele. Ficou-nos a recordação daquelas noitadas que, para mim e para a Helena e, estou certo, para o Mário Ferraz e para a Helena dele, foram das mais divertidas, ou melhor dito, das mais giras das nossas vidas. E por aqui me fico. Pl’o que havia de me lembrar. PARAGRAGO. Que alívio, a Helena desta vez achou o meu escrito bem escrito, até se riu. Recordações!
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1 comentário:
Ah, o filme dos jogadores de pocker. Lembro-me das máscaras. Acho que ainda tive uma ou outra na mão. E havia a cena em que distribuíam as cartas. Incluía uns truques de magia cinematográfica, se bem me recordo. Era uma obra venerada lá em casa. É pena que se tenha extraviado.
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