A literatura policial assenta em histórias que, em princípio, obedecem ou devem obedecer a três exigências: ter crime, ter mistério, ter investigação. O crime pode ser de sangue ou não: homicídio, roubo, rapto, chantagem, mas deverá ser sempre, incondicionalmente, enigmático, ter enigma, ser misterioso, e, assim, obrigar sempre a uma investigação exigente, para ser desvendado - quem o cometeu, como, onde, quando, porquê - a cargo da polícia oficial, ou, na eventual ausência inicial desta, de um detective profissional privado, de um investigador amador, ou apenas um diletante. A satisfação destas exigências que, independentemente do rigor e da imaginação e diversidade com que são tratadas, caracterizam o género, depende naturalmente do talento, da vontade e das intenções do escritor. Segundo consenso maisou menos alargado, a literatura policial nasceu em meados do século XIX, mais precisamente em 1841, com a publicação de um pequeno romance, The murders in the rue Morgue (1), protagonizado por um investigador diletante, o francês Auguste Dupin, imaginado pelo escritor norte-americano Edgar Allan Pôe, embora o seu desenvolvimento só se tenha verificado vinte anos mais tarde, graças ao escritor francês Émile Gaboriau, criador dos inspectores Tabaret e Lecoq, da Sûreté, e a sua verdadeira consolidação, maturidade e geral aceitação, a partir dos finais dos anos 80, ainda do século XIX, se deva ao britânico Conan Doyle, genial criador do mítico detective privado Sherlock Holmes e do seu amigo e biógrafo dr. Watson. Não esquecer, no entanto, que já antes do nascimento desta literatura policial, subordinada à investigação dedutiva do mistério e do crime, já existiam, e continuaram e continuam a existir, histórias sobre casos do foro policial, embora de contornos, características e objectivos diferentes, que, em certa medida, resultaram do facto dos escritores cedo se terem apercebido da atracção que a imaginação humana sente e continua a sentir, pelas grandes tragédias, pelos dramas de “faca e alguidar”, pelos intrincados confrontos entre a maldade e a moralidade, pelo macabro e o terror, com o sobrenatural à mistura, pelo que, com inteira propriedade, sempre e melhor a podemos considerar e adjectivar de moderna, de literatura policial moderna, e, já há muito, de clássica. Ainda hoje há quem considere a literatura policial um género literário de segunda ordem. É um preconceito de que insiste em esquecer que a qualidade de uma obra não depende só do tema abordado, mas do rigor, da substância, da originalidade e qualidade com que o mesmo é apresentado, desenvolvido, aprofundado, e até enquadrado no contexto social. Mas reconheça-se que já são poucos os que se esquivam e se envergonham de ser apanhados a ler, ou apenas a ter na mão, um romance policial e que quando o são se desdobram em justificações ridículas, pueris. Já Siegfried Kracauer, no seu tratado filosófico, Der Detektive-Roman (2), composto entre 1922e 1925, escrevia: “O romance policial que a maior parte das pessoas cultas conhecem como obra extra-literária sem valor, levando uma existência confortável nas bibliotecas de empréstimo, conquistou progressivamente uma posição à qual dificilmente se pode contestar o seu grau e a sua importância”. Também Jorge Luís Borges, em 1978, numa sua conferência sobre o conto policial (3), interrogava: “Que poderíamos dizer como apologia do género policial?” e respondia: “Há uma muito evidente e acertada: a nossa literatura tende para o caótico. Tende-se para o verso livre porque é mais fácil que o verso regular, mas o contrário é que é verdade. Tende-se a suprimir personagens e argumentos; tudo é muito vago. Nesta nossa época tão caótica, algo existe que, com humildade, conservou as virtudes clássicas: o conto policial. Isto porque não se compreende um conto policial sem princípio, meio e fim. Têm-nos escrito escritores de segunda ordem, mas alguns saíram da pena de escritores excelentes, como Dickens, Stevenson e, sobretudo, Wilkie Collins. Eu diria, em defesa da novela policial, que ela não precisa que a defendam; lida presentemente com um certo desdém, vem salvando a ordem numa época de desordem. É uma coisa meritória e que lhe devemos agradecer.” E Ernest Mandel, na introdução à sua história social do romance policial, Delighful Murder (4), de 1948, declarava: “Em primeiro lugar devo confessar que gosto de ler romances policiais. Durante muito tempo pensei que eram um simples divertimento, uma evasão: quando lemos um não pensamos em mais nada e, assim que acabamos de o ler, deixamos de pensar nele. Mas este livrinho é em si próprio a prova de que essa maneira de ver é pelo menos incompleta.” Assim como o nosso Fernando Pessoa, num texto (5) de reflexão pessoal, confessava: “Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura do romance policial. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a vida deixe que eu passe, conto por do melhor ano aqueles em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo…”
(1) - Edgar Allan Põe, Os crimes da
rua Morgue, em Histórias de Mistério e Terror, Livraria Civilização,
Porto, 1966
(2 (2) - Siegfried Kracauer, Le Roman
Policier, un traité philosophique, Payot, Paris, 1981
(3 (3) - Jorge Luís Borges, Borges, oral,
em Obras Completas, 4º volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1999
(4 (4) - Ernest Mandel, Cadáveres Esquisitos
(uma história social do romance policial), Edições Cotovia, Lisboa, 1993
(5 (5) - Fernando Pessoa, Quaresma,
decifrador, em Obras de Fernando Pessoa, Assírio & Alvim,
Lisboa, 2008
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