Só há pouco dei por ele, mas penso já ter sido o ano passado que, no mercado dos DVDs, saiu um compacto do realizador russo Nikita Mikhalkov. Dele faz parte um filme, "A Escrava do Amor ou Um Drama Pungente na Época do Cinema Mudo", que me traz recordações a que não resisto. Ele estreou-se em Lisboa nos anos 80, mais precisamente, em 1986, e não esteve no cartaz mais do que duas semanas. A origem, o título, os nomes desconhecidos que o suportavam, não cativaram o grande público. E, no entanto, não tenho dúvidas em afirmá-lo, foi um dos melhores filmes exibidos, nesse ano, em Portugal. Escrevi, então, sobre ele, um pequeno artigo, que em parte aqui trascrevo:
A história desenrola-se em 1917. As convulsões sociais e políticas, marcadamente populares, ocorridas em Petrogrado e Moscovo, que provocam a abdicação de Nicolau II, em Fevereiro, e mais tarde, em Outubro, levam ao poder o partido bolchevique, ocasionam inquietação e medo no seio das camadas mais abastadas da população(industriais, comerciantes, banqueiros, profissões liberais) e também nos meios artísticos (dançarinos, coreógrafos, escritores, cineastas, actores, etc.) A fuga dessa gente dá-se para a Escandinávia, ou através da Sibéria, ou em direcção à Crimeia ocupada pelos contra-revolucionários. O sol da Crimeia atrai naturalmente os cineastas, e é lá, numa cidade à beira do Mar Negro, no centro de uma praça vazia e soalheira, que o operador Pototski é assassinado a tiro, à vista da sua amada, tremente de terror, a estrela de cinema Olga Voznessenskaia. É o episódio fulcral do filme, sequência antológica bem ao estilo do cinema mudo: a câmara enquadrada e fixa, o gesto lento e teatral. A tragédia está no olhar esbugalhado de Olga, o horror na imagem da chávena de café que lhe treme nas mãos. Olga e Pototski fazem parte dum grupo que ensaia e filma um drama melodramático e ridículo intitulado, "A Escrava do Amor". Ela é a heroína do filme e a protagonista do filme do filme, ídolo das multidões, personagem caprichosa e mimada para quem a realidade é o mundo artificial dos seus próprios filmes. Será confrontada com a realidade revolucionária através de e por Pototskaia, bolchevique militante, que, clandestinamente, vai filmando as atrocidades cometidas pelas tropas tsaristas. Será Olga quem esconde as bobines reveladoras e as entregará aos resistentes locais que vingarão a morte de Potoskaia, abatendo o responsável local da repressão. À volta de Olga e Pototskaia agitam-se o realizador Kaliaguine, o produtor Iujakov, o actor Kanine, a actriz Diuchame, o guionista, expectadores da tragédia dos dois apaixonados, mas, simultanamente, intérpretes dos dramas das suas vidas vazias, sem sentido e sem futuro. Receosos da Revolução que não têm ânimo de aceitar e compreender, fugindo, suspirando por Paris, eles já recordam, no entanto, com saudade e lágrimas nos olhos, a erva verde e tenra da sua Rússia Central, que vão perder, que já perderam.
Um romantismo bem nuançado, uma pitada de poesia, o humor bem controlado, e uma impecável direcção de actores, são as armas de Mikhalkov. A fotografia a cores, muito bela, é no entanto, irregular, prejudicada pela cópia de fraca qualidade. Não há no filme ambiguidade ou nostalgia. O realizador conhece perfeitamente o tema, o local e a época da sua história. Ele ama os seus personagens e compreende profundamente as suas dificuldades e as suas dúvidas. Não está virado para o passado, está a olhá-lo e a descrevê-lo inteligentemente e inteligivelmente. Apenas pretende comover, interessar e motivar.
Na sequência derradeira do filme, Olga, denunciada aos brancos e abandonada num eléctrico desarvorado, invectiva, amargamente, os cavaleiros cossacos que a perseguem. Eléctrico e cavaleiros desaparecem ao longe, engolidos pelo nevoeiro.
Elena Solovei, a Olga Voznessenskaia, escrava do amor, esteve em Portugal, na altura da estreia do filme. Tive o prazer de a conhecer pessoalmente, de estar com ela. Uma mulher belíssima, de extrema simplicidade e simpatia. Jantou em nossa casa, fomos aos fados, falámos de cinema. Foi há vinte e dois anos!
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