22 de agosto de 2017

BIBLIOTECA (4): o Corredor

Suficientemente largo e comprido para merecer as seis prateleiras que lhe ofereci e que eu próprio instalei. Na primeira, a contar de cima, apenas alguns utensílios decorativos, ou o que se lhes queira chamar: um jarro e uma jarra, um pote, uma caneca, um prato, uma taça. Nas outras cinco nada mais nada menos do que a Literatura de ficção e de não-ficção, dos países europeus, à excepção da britânica e da russa. A saber, mas não todos porque são muitos:
Alemanha:  Bertolt Brecht  (A boa alma de Sé-Chuão),  Thomas Mann (A montanha mágica)
Áustria:  Arthur Schnitzler  (História de um sonho),
Bélgica:  George Simenon  (O homem que via passar os combóios)
Bulgária:  Tzvetan Todorov  (Poética da prosa)
Chéquia:  Franz Kafka (O processo),  Milan Kundera  (A insustentável leveza do ser)
Dinamarca:  Peter Hoeg  (A senhora Smilla e a sua especial percepção da neve)
Espanha:  Cervantes  (D. Quixote de La Mancha),  Garcia Lorca (A casa de Bernarda Alba)
França:  Aragon (A semana santa), Camus (estrangeiro), Gustave Flaubert (Madame Bovary)
Grécia:  Homero (Ilíada), Homero (Odisseia)
Holanda:  Harry Mulisch (O assalto)
Hungria.  Georg Lukács ( Significado presente do realismo)
Irlanda:  James Joyce (Ulisses)
Itália: Dante (A divina comédia), Umberto Eco (O nome da rosa), Lampedusa (O Leopardo)
Noruega:  Josteinr Gaarder (O mundo de Sofia)
Polónia:  Wanda Wassilewska  (Arco-Íris)
Suécia: Larsson (Os homens que odeiam as mulheres), Mankell (O assassino sem rosto)

Antes de avançar nesta viagem guiada, dois episódios que de todo ainda não esqueci.
Há alguns anos, muito antes do 25 de Abril, veio a Portugal, em digressão, uma companhia de teatro brasileira de Maria Della Costa e Sandro Polónio . Instalou-se num dos teatros do Parque Mayer, o Capitólio, e, do seu reportório, escolheu para estreia a peça de Bertolt Brecht,  A boa alma de Sé-Chuão. Logo resolvemos ir à estreia convictos que a peça não estaria muito tempo no cartaz. Para  o regime salazarista, Brecht não era flor que se cheirasse. Não imaginávamos, no entanto, o que aconteceu.O ambiente era de expectativa e de algum nervosismo, pensava-se que podia haver agentes da PIDE entre os espectadores. E havia!
Já com o espectáculo a decorrer, a sala, o palco, os bastidores foram invadidos pela GNR e pela polícia política. Houve gritos, desmaios, algumas detenções, os espectadores foram para o olho da
rua, e os artistas bem devem ter começado a pensar em fazer as malas. Era assim no tempo do fascismo.

Anos depois, em 1968, veio a Portugal, a convite da F. C. Gulbenkian, para fecho do seu Festival de Música, a companhia de bailado de Maurice Béjart, para apresentar, no Coliseu, o seu Romeu e Julieta. Fomos à estreia. Casa esgotada, presença do almirante Américo Tomás, e de Azeredo Perdigão, espectáculo deslumbrante, arrebatador, inesquecível. Mas no fim, Maurice Béjart veio à boca de cena com uma notícia da última hora, chocante, dramática, aterradora, o assassinato do presidente Kennedy dos EUA. Maurice Béjart foi muito assertivo, verberando as forças fascistas reaccionárias, anti-democráticas. Ambiente escaldante, emotivo e desinibido, pela força do espectáculo  e pela revoltante notícia. Logo se ouviram gritos e palavras de ordem, pela democracia contra a reacção. E lá saímos todos um pouco em turbilhão, mas o burburinho maior foi já na rua com  a chegada, em força, da polícia.
O final foi triste e vergonhoso. Béjart e a sua companhia de bailado postos nessa noite na fronteira,
expulsos por ordem de Salazar.

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