e
Para a História da Literatura Policial Portuguesa que um dia alguém há-de escrever
Dois dossiês com textos sobre temas do mesmo universo literário, o do género policial. Assim sendo, bem ou mal, decidi juntá-los nesta peregrinação aos meus escritos. Versões sobre a literatura policia, em geral, não faltarão, mas quis dar a minha própria, além de explicar o porquê de lhe ter chamado moderna. A panorâmica sobre a literatura policial portuguesa, é modesto um contributo para quem lhe quiser fazer a história.
Cada um dos dossiês tem o seu texto de apresentação pelo que, para não sobrecarregar a exposição, preparei uma súmula dos dois, para aqui a trascrever.
INTRODUÇÃO
O género
literário a que se convencionou chamar policial, assenta em histórias que
obedecem, ou devem obedecer, a três exigências: ter crime, ter mistério, ter
investigação. O crime pode ser de sangue ou não, um homicídio, um roubo, um
rapto, uma chantagem, mas deverá ser sempre, incondicionalmente, enigmático,
ter enigma, ter mistério, ser misterioso
e, assim, obrigar, sempre, a uma investigação exigente, para ser desvendado –
quem o cometeu, como, quando, onde e porquê – a cargo da polícia oficial ou, na
eventual ausência inicial desta, de um detective profissional privado, de um
investigador amador, ou, apenas, de um diletante. A satisfação destas
exigências que, independentemente do rigor e da imaginação e diversidade com
que são tratadas, caracterizam o género, depende, naturalmente, do talento, da
vontade e das intenções do escritor.
A tais
histórias, ingleses e americanos chamam-lhes detective stories, mas conforme os temas abordados e o
desenvolvimento que lhes é dado, também as designam por thrillers ou crime stories.
Os franceses, mais despreocupados, designam-nas, simplesmente, policiers, embora tenham tido também a ideia
peregrina de lhes chamar polares.
Nós, portugueses, solidariamente latinos, optámos também, sensatamente, por
chamar-lhes, policiais ou policiárias
Segundo consenso, mais ou menos
alargado, a literatura policial nasceu em meados do século XIX, mais
precisamente em 1841, com a publicação de um pequeno romance, The murders in the rue Morgue (1), protagonizado
por um investigador diletante, o francês
Auguste Dupin, imaginado pelo escritor norte-americano, Edgar Allan Pöe, embora
o seu desenvolvimento só se tenha verificado, vinte anos mais tarde, graças ao
escritor francês, Émile Gaboriau, criador dos inspectores Tabaret e Lecoq, da
Sûreté, e a sua verdadeira consolidação, maturidade e geral aceitação, a partir
dos finais dos anos 80, ainda do século XIX, se deva ao britânico, Conan Doyle,
genial criador do mítico detective privado Sherlock Holmes e do seu amigo e
biógrafo dr. Watson.
Não esquecer,
no entanto, que já antes do nascimento desta literatura policial, subordinada à
investigação dedutiva do mistério e do crime, existiam, e continuaram a
existir, histórias sobre casos de perfil policial, embora de contornos,
características, e objectivos diferentes: as grandes tragédias, os dramas de “faca e alguidar”, os intrincados
confrontos entre a maldade e a moralidade, o macabro e o terror, com o
sobrenatural à mistura, pelo que, com inteira propriedade, adjectivamos de moderna, a literatura policial.
De tais histórias que em maior ou menor grau, influenciaram a literatura policial de que foram predecessoras, o justo destaque vai para o livro, Mémoires de Vidoq (1828), de Eugéne-François Vidoq (1775-1857), dado o impacto das suas revelações sobre o mundo do crime.
De tais histórias que em maior ou menor grau, influenciaram a literatura policial de que foram predecessoras, o justo destaque vai para o livro, Mémoires de Vidoq (1828), de Eugéne-François Vidoq (1775-1857), dado o impacto das suas revelações sobre o mundo do crime.
Vidoq, indivíduo de maus princípios, com uma juventude dedicada ao banditismo, em 1809, aos 34 anos, resolveu mudar de campo, não de carácter, ofereceu-se para informador da polícia, e tão profícua foi a sua acção que, dois anos depois, foi nomeado chefe da Sûreté que dirigiu até 1827, e depois de 1931 a 1843, e em 1845, já reformado, abriu a primeira agência privada de detectives do mundo.
Tendo-se relacionado com vários escritores, o seu livro de memórias, e ele próprio, a sua personalidade e os seus conhecimentos, inspiraram, entre outros, Alexandre Dumas, Eugène Sue, Victor Hugo e,
principalmente, Honorè de Balzac com quem, em 1822, travou relações de amizade.
Tornou-se, assim, o Vautrin de Le Pére Goriot, mas foi ele também, mais
tarde, o modelo do Jackal de Les Mohicanos
de Paris, do Rocambole, simultaneamente, do foragido Jean Valjean e do
polícia Javert, de Les Misérables, e
ainda, porque não, do Arsène Lupin.
E para além de
Vidocq e das suas memórias, indispensável é registar, também, obras e autores tão significativos como: The Castle of Otranto (1764), de Horace
Walpole (1717-1797); The Mysteries of
Udolpho (1794), de Ann Radcliffe (1764-1823); Caleb Williams (1794), de William Godwin (1756-1836); Ambrósio, or the Monk (1795), de Matthew
Gregory Lewis (1775-1818); Ormond or The
Secret Witness (1799), de Charles Brockden Brown (1771-1810); Der Kaliber (1829), de Adolf Mullner
(1774-1829); Pelham ou Les Aventures d'un
Gentleman (1828) e Eugen Aram (1832),
de Edward Bulwer Litton (1803-1873); Ferragus
(1833), Le Père Goriot (1835) e Une Ténèbreuse Affaire (1841), de Honoré
de Balzac (1799-1850; Mémoires du Diable (1837),
de Frédéric Soulié; The Avenger (1838),
de Thomas de Quincey; Jack Sheppard
(1839), de William Harrison Ainsworth.
Em Portugal, a literatura
policial, sem tradição, existiu, embora sem grande destaque ou qualidade. Os
seus antecedentes foram as más traduções, quase sempre do francês, dos contos e
romances góticos, e depois, influenciados por tais textos, o teatro de horror e
a novelística negra. As primeiras obras, com características que já faziam
adivinhar a futura ficção policial, detectam-se à volta do início da segunda
metade do século XIX. Exemplos disso são: os dramalhões, Os dois renegados e O homem
da máscara negra, ambos de 1839, de Mendes Leal (1818-1886); os romances Paulo, o montanhês (1853) e O génio do mal (1856/57), de Arnaldo Gama (1828-1865); Mistérios de Lisboa (1851) e A
mão do finado (1853), de Alfredo Possolo Hogan (1830-1865); a peça O castigo da vingança (1862) e os
contos, O punhal de Rosaura e Os
canibais, (1866), A febre do
jogo, A vestal, Honra antiga e J. Moreno (1867), de Álvaro Carvalhal (1844-1868); e, porque não, Mistérios de Lisboa (1853) e Livro negro do Padre Dinis (1855), de Camilo Castelo Branco (1825-1890); assim como
também, embora já algo afastado do perfil desse pequeno grupo, aquele que é
considerado, com maior ou menor aceitação, o primeiro romance policial
português:
O
MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA,
Eça de Queiroz
(Póvoa de Varzim, 25/11/1845 – Paris, 16/08/1900)
Ramalho Ortigão (Porto, 24/11/1836 – Lisboa,
27/09/1915)
Ainda hoje há quem considere a
literatura policial um género literário de segunda ordem. É um preconceito de
quem insiste em esquecer que a qualidade de uma obra não depende do tema
abordado, mas do rigor, da substância, da originalidade e qualidade com que o
mesmo é apresentado, desenvolvido, aprofundado, e até enquadrado no contexto
social. Mas reconheça-se que já são poucos os que se esquivam e se envergonham
de ser apanhados a ler, ou apenas a ter na mão, um romance policial, e que
quando o são se desdobram em justificações ridículas, pueris.
Já Siegfried
Kracauer, no seu tratado filosófico, Der
Detektiv-Roman, composto entre 1922 e 1925, escrevia: “O romance policial
que a maior parte das pessoas cultas conhecem como obra extra literária sem
valor, levando uma existência confortável nas bibliotecas de empréstimo,
conquistou progressivamente uma posição à qual dificilmente se pode contestar o
seu grau e a sua importância” (2).
Também Jorge
Luís Borges, em 1978, numa sua conferência sobre o conto policial, interrogava:
“Que poderíamos dizer como apologia do género policial?” e respondia: “Há uma
muito evidente e acertada: a nossa literatura tende para o caótico. Tende-se
para o verso livre porque é mais fácil que o verso regular, mas o contrário é que
é verdade. Tende-se a suprimir personagens e argumentos; tudo é muito vago.Nesta
nossa época tão caótica,
algo existe que,
com humildade, conservou as virtude clássicas: o conto policial. Isto porque
não se compreende um conto policial sem princípio, meio e fim. Têm-nos escrito
escritores de segunda ordem, mas alguns saíram da pena de escritores
excelentes, como Dickens, Stevenson e, sobretudo, Wilkie Collins. Eu diria, em
defesa da novela policial, que ela não precisa que a defendam; lida
presentemente com um certo desdém, vem salvando a ordem numa época de desordem.
É uma coisa meritória e que lhe devemos agradecer” (3).
E Ernest
Mandel, na introdução à sua história social do romance policial, Delightful Murder, de 1984,
declarava: “Em primeiro lugar, devo confessar que gosto de ler romances
policiais. Durante muito tempo pensei que eram um simples divertimento, uma
evasão: quando lemos um não pensamos em mais nada e, assim que acabamos de o
ler, deixamos de pensar nele. Mas este livrinho é em si próprio a prova de que
essa maneira de ver é pelo menos incompleta” (4).
Assim
como o nosso Fernando Pessoa, num texto de reflexão pessoal, confessava:
"Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda
resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o
número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto
por do melhor ano aqueles em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison
me pega na consciência ao colo…" (5)
NOTAS
(1) – Edgar Allan Pöe, Os crimes da rua Morgue, em Histórias de Mistério e Terror, Livraria
Civilização, Porto, 1966.
(2) – Siegfried Kracauer, Le Roman
Policier, un traité philosophique,
Payot, Paris, 1981.
(3) – Jorge Luís Borges, Borges, Oral, em Obras Completas,
4º volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1999.
(4) – Ernest Mandel, Cadáveres Esquisitos (uma história social do
romance policial), Edições Cotovia, Lisboa, 1993.
(5) – Fernando Pessoa, Quaresma, decifrador, Assírio &
Alvim, Obras de Fernando Pessdoa / 23, Lisboa, 2008.
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