Bio-filmografia publicada no catálogo, CICLO DO CINEMA CLÁSSICO SOVIÉTICO, da Cinemateca Nacional, evento efectuado de parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987
Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia
Soviética
I
Aleksandr Piotrovitch Dovjenko, nome completo dum
artista ucraniano, pintor, escritor, mas, principalmente, cineasta de grande
prestígio.
Não tendo sido, embora, o
introdutor do cinema na Ucrânia, foi, na realidade, o pai do cinema ucraniano,
que, verdadeiramente, nasceu com Zvenigora,
cresceu com Arsenal e atingiu a
maioridade com A terra.
Dovjenko só cinematizou o que ele próprio escreveu e,
para o cinema, ele só escreveu, sobre a Ucrânia, sobre a terra ucraniana, sobre
o povo ucraniano. Nacionalismo extremo? De modo algum! Apenas honestidade de
quem só fala do que conhece e sabe. Aliás, o discurso de Dovjenko foi sempre de
total identificação com a pátria socialista e soviética e, por isso mesmo, ele
foi também um dos mestres incontestados do cinema nascido da revolução.
Dovjenko nasceu há noventa anos,
no dia 11 de Setembro de 1894, em Sosnitsy, pequena aldeia ucraniana, marginal
do rio Desna, na região de Tchernigov, filho de camponeses pobres e iletrados.
Estudou as primeiras letras no
colégio da sua aldeia natal, fez o secundário e frequentou a escola normal dos
professores primários.
Isento do serviço militar devido
à sua saúde delicada, salvou-se da mobilização de 1914.
De 1914 a 1917 foi mestre
escola em Jitomir e depois em
Kiev. Nesta última cidade foi também, e simultaneamente,
aluno da faculdade de Hi stória Natural e do Instituto de Economia Comercial.
Ainda em Kiev, após a retirada
dos polacos que a tinham ocupado em Maio de 1920, durante a guerra
polaco-soviética que só veio a terminar em 18 de Março de 1921
com
o tratado de Riga, Dovjenko participou na organização da secção de Kiev do
Comissariado do Povo para a educação e foi secretário da direcção, dirigindo o
sector urbano. Ao mesmo tempo tornou-se funcionário da administração local da
educação popular.
Em 1921 foi transferido para
Kharkov, para prestar serviço no Comissariado do Povo dos Negócios Estrangeiros.
Kharkov era na altura a capital da República Socialista Soviética da Ucrânia.,
fundada em 25 de Dezembro de 1917 por decisão do I Congresso Pan-Ucraniano dos
Sovietes, em oposição à república proclamada em Kiev, em Novembro do mesmo ano,
pela Rada Central, organização nacionalista da burguesia reaccionária.
Integrado no corpo diplomático,
foi enviado primeiro para Varsóvia e mais tarde para Berlim, onde trabalhou nos
respectivos consulados durante cerca de dois anos.
Em Berlim estudou pintura com o
professor Heckel e quando, em fins de 1923, regressou a Kharkov, dedicou-se à
pintura e ao desenho, tendo sido caricaturista e ilustrador do jornal Visi.
Finalmente, em 1925, então com 31
anos, desgostoso com as fracas audiências que a pintura e o desenho pareciam
atrair, não sabendo nada de cinema, mas obcecado com as imagens animadas vistas, ocasionalmente, abandonou tudo e todos, inclusivamente, a casa onde vivia, e partiu para Odessa.
A reorganização do cinema na Ucrânia após a revolução,
a guerra civil e a intervenção estrangeira, passou pela criação, em 1922, da
Direcção Pan-ucraniana da Fotografia e do Cinema, VUFKU, que construíra em
Odessa, uma pequena cidade onde funcionava o centro da actividade
cinematográfica. Dovjenko não teve dificuldade em ser admitido no seio dos
trabalhadores de cinema e, em 1926, pela primeira vez, inscreveu o seu nome num
filme, como argumentista. Uma comédia intitulada, Vassia o reformador, que se estreou a 17 de Julho. E ainda nesse
ano, em Ialta, já como realizador, filmou uma segunda comédia, também escrita
por si, chamada, O pequeno fruto do amor.
Dois pequenos filmes que ele não incluiu na sua filmografia, o que já não
aconteceu com o terceiro, A mala do
correio diplomático, onde pela primeira e única vez figura entre os
intérpretes, um filme de aventuras, baseado num acontecimento verídico.
Finalmente, a sua quarta
realização, Zvenigora, que ele
sempre considerou ser, verdadeiramente, a sua primeira obra, e sobre a qual
declarou: Zvenigora permitiu-me julgar da
minha capacidade de fazer filmes… Foi o catálogo de todas as minhas
possibilidades de criador. Estreou-se em Kiev, no dia 13 de Abril de 1928,
e em Moscovo, no dia 8 do mês seguinte, e para a qual a VUFKU, insegura quanto
a um filme que ninguém parecia compreender, convidou Eisenstein e Pudovkine,
cuja autoridade no campo cinematográfico era já incontestável. Ambos assistiram
à projecção e foram apresentados àquele
realizador desconhecido. Eisenstein, mais tarde, escreveu um artigo sobre o
acontecimento, que intitulou, O
nascimento de um génio.
Zvenigora é a história da Ucrânia, desde os tempos mais remotos até
à revolução, concebida numa sucessão de episódios, ora fantásticos ora
realistas, repletos de símbolos, alegorias e de pistas. Filme de difícil
leitura para quem não conhecesse, profundamente, a história do país, mas que a
todos se impunha pelo fascínio da sua poesia, do seu lirismo, pelo seu sopro
épico, e muito também pela sua excentricidade, qualidades que, em maior ou
menor grau, irão estar sempre presentes nas obras de Dovjenko.
Nesse ano de 1928, conheceu e
casou com a actriz Iulia Solntseva que se estreara no cinema em 1924 como
protagonista do filme Aelita, baseado no romance homónimo de Alexei Tolstoi,
realizado por Iakov Protazanov. A íntima e profunda colaboração entre ambos vai
durar toda a vida do artista e prolongar-se-à, mesmo, para além dela, pois será
Iulia Solntseva que já depois da morte de Dovjenko, irá dirigir as filmagens
dos três últimos argumentos que ele escreveu e preparou: O poema do mar (1958), Crónica
dos anos de fogo (1961) e O Desna
encantado (1963).
A sua quinta realização, Arsenal, de 1929, é um poema sobre a
revolução na Ucrânia. O principal personagem do filme é o já conhecido, Timoch,
o jovem camponês de Zvenigora. Timoch,
que se tornou guarda vermelho, esteve na guerra de 1914, e que em Janeiro de
1918 é operário e encabeça a greve e insurreição no estaleiro fabril do
Arsenal, em Kiev. A
história dessa greve e dessa insurreição afogadas em sangue, é o principal
episódio do filme. Os operários são chacinados, mas já nada nem ninguém travará
a revolução. Simbolicamente, Timoch, dando o peito descoberto às forças da
repressão, será baleado repetidamente, mas mantém-se de pé, invulnerável,
invencível, vivo.
Tendo-se estreado em 25 de Fevereiro, em Kiev, e em 26
de Março, em Moscovo, Arsenal
suportou bem as
reticências de alguns críticos e ganhou, sem s favores do público. Com ele Dovjenko confirmou todas as esperanças que fizera nascer com Zvenigora.
Filho
do campo e filho extremoso, Dovjenko não podia ignorar a colectivização das
terras ucranianas e foi ela o tema do seu sexto filme, A terra, realizado em Kiev e nessa mesma cidade estreado, no dia 8
de Abril de 1930.
A terra, que foi o seu último filme mudo, é geralmente considerado a sua melhor obra e uma indiscutível
obra-prima, muito embora, também ele, dentro e fora do país, não escapasse às
críticas e incompreensões dos que sobrepunham a retórica política e ideológica
à arte, e Dovjenko tenha sido acusado de idealismo e até de terrorismo.
O jovem camponês Timoch de Zvenigora, que depois de ter sido soldado virara operário em Arsenal, chama-se em A terra, Vassili, trabalha no campo e é
tractorista. O mesmo actor, Semione Svachenko, desempenha essas personagens nos
três filmes e, certamente, não por acaso. Camponês, soldado, operário, tantos e
um só: o jovem revolucionário ucraniano que luta, até à morte, pela vida e
felicidade do seu povo e da sua pátria, no campo de batalha, na fábrica, no kolkhos.
É na organização de um kolkhos, na sua aldeia, que Vassili
trabalha afincadamente até à sua morte, assassinado a tiro por um kulak, e é a emoção e indignação que a
tragédia provoca, que irá despertar os aldeões e empurrá-los, definitivamente,
para a vida colectiva.
A morte é um tema muito constante
e de muito peso nos filmes de Dovjenko. Mas ela, na sua inevitabilidade, nunca
é apresentada como um fim, mas, pelo contrário, anuncia sempre a vinda de algo
de novo e de melhor.
Num artigo necrológico sobre
Dovjenko, da autoria de Ivor Montagu, publicado na revista Sight and Sound, no verão de 1957, diz o crítico com muita
propriedade: Os mortos cobrem os filmes de Dovjenko. Nunca outro artista em qualquer
arte, soube tão bem dilacerar os nossos corações. Mas, em Dovjenko, nenhuma
morte é fútil.
Com, A terra, encerra-se a primeira fase da
actividade cinematográfica de Aleksandr Dovjenko.
II
Em 1931, em viajem pela Europa,
acompanhado pela mulher, Dovjenko, com o seu último filme na bagagem,
apresentou A terra, em Paris, Londres, Berlim, Praga.
O
sucesso foi incontestável, com a fita a ser unanimemente aplaudida, embora a
nível do grande público a aceitação tenha sido claramente limitada pelo advento
do sonoro.
Já após o falecimento de
Dovjenko, em 1958, o filme teve a sua grande consagração ao ser considerado
como um dos doze melhores de todos os tempos. À margem do Festival
Internacional de Cinema que, nesse ano de 1958, decorreu em Bruxelas, durante a
Exposição Universal, levada a efeito na capital belga, um júri de 117
historiadores e críticos ligados ao departamento internacional de pesquisa
histórica cinematográfica,
foi convidado a seleccionar e classificar os trinta melhores filmes de todos os
tempos. O apuramento dos 117 boletins deu origem a uma lista de 609 títulos, da
qual o comité organizador retirou e publicou os doze mais votados. Três eram
soviéticos: O couraçado Potiomkine,
de Serguei Eisenstein, o primeiro, A mãe,
de Vsevolod Pudovkine, o oitavo, A Terra,
o décimo.
Durante os quatro meses e meio
que esteve no estrangeiro, Dovjenko teve ocasião de expor e discutir os
princípios que norteavam o seu cinema. O resumo que deles deu, em Paris, à Revue du Cinema, transcreve-os Jay Leyda no seu Kino-Histoire du Cinema Russe e Soviétique: "Não é a história quem interessa. Considero-a apenas como
o meio mais eficaz de exprimir e de pintar formas sociais importantes. É por isso que trabalho com documentos típicos, aplicando o método de síntese. Os meus heróis, e o seu comportamento são representativos da classe
o meio mais eficaz de exprimir e de pintar formas sociais importantes. É por isso que trabalho com documentos típicos, aplicando o método de síntese. Os meus heróis, e o seu comportamento são representativos da classe
a que pertencem. Por vezes a
documentação dos meus filmes está concentrada em alto grau e ao mesmo tempo,
faço--a passar pelo prisma da emoção que lhe dá vida e, por vezes, eloquência.
Não posso ficar indiferente perante esses documentos. É necessário amar, ou
odiar, muito e com força; sem isso uma obra fica seca e dogmática.
Regressado à Ucrânia, Dovjenko
pensava, para o seu primeiro filme sonoro, nma história passada no Ártico, nas
regiões polares, que, no entanto, não teve aceitação. Os estúdios de Kiev
propuseram-lhe, antes, um filme sobre a industrialização o que o levou a
escrever um argumento cujo pano de fundo era a construção da barragem do
Dniepr. O filme chamou-se, Ivane, e
foi estreado em Moscovo, no dia 6 de Novembro de 1932, no âmbito das
comemorações do 15º aniversário da Revolução de Outubro.
O fio do cenário é extremamente simples, o jovem
Ivane, camponês vigoroso, bem parecido e analfabeto, sai da sua aldeia e é
recrutado para ir trabalhar na construção de um barragem onde vai ser instalada
uma central hidro-eléctrica. Transformando-se, gradualmente, num operário,
Ivane vai tomando consciência da sua ignorância e resolve dedicar-se ao estudo,
para assim vir a ser, verdadeiramente, senhor do seu destino. Ivane é assim o
símbolo de todo o povo, o povo soviético, a lutar e trabalhar pelo seu futuro.
Mas a narrativa fílmica saiu complexa e difícil de seguir, muito ao estilo
habitual de Dovjenko: despreocupação no desenvolvimento do enredo básico, com
muitos cortes, interrupções e desvios, com episódios que, aparentemente, mas só
aparentemente, nada têm com a acção principal, e grande relevo dado ao
movimento das grandes ideias e à dinâmica dos processos sociais, através de
cenas exteriores de grande amplitude e beleza.
O filme foi considerado um
falhanço e criticado com alguma incompreensão, o que levou Dovjenko a virar as
costas ao mau ambiente que o rodeava em Kiev, e a abalar para Moscovo, trocando
a Ukraniafilm pela Mosfilm.
Aos estúdios moscovitas Dovjenko
começou por propor a realização de um filme sobre o Tsar, uma tragicomédia sobre
a agonia do tsarismo russo, a degeneração da família Romanov e as intrigas da
corte imperial, mas a proposta não teve acolhimento. A alternativa que lhe foi
oferecida, uma fita sobre a 1ª Grande Guerra, foi por sua vez recusada. Mais
tarde nasceu a ideia de um filme sobre a Sibéria, baseado num cenário escrito
por Aleksandr Fadeiev, que Dovjenko comentou com Vichnevski com quem,
entretanto, estabelecera traços de amizade. Avançou com a ideia, mas para a
fazer vingar viu-se na necessidade de recorrer ao próprio Estaline, a quem
escreveu, que o chamou ao Kremlin, ouviu-lhe a exposição e deu o seu acordo ao
projecto siberiano.
Partiu para o Extremo Oriente, em
Setembro de 1933, e por lá andou durante cerca de quatro meses. O material
recolhido levou-o a repensar todo o cenário e a desistir de Fadeiev. Regressado
a Moscovo escreveu em dois meses e meio o argumento de, Aerograd. O oriente, belo, exótico e rico, era também um dos pontos
mais vulneráveis da União Soviética. A memória da guerra com o Japão ainda
estava muito viva, Vladivostok só fora libertada em 1922, e os japoneses
ocupavam agora a Manchúria, a ser transformada em base militar de
agressão.
Dovjenko pensava e, expressamente, o declarou no
encontro nacional dos cineastas, em 1935, que haveria guerra, dentro de poucos
anos, e que era necessário preparar as armas para a batalha. Aerograd, estava na linha dos filme chamados de defesa. Ele tinha de retratar não o oriente de ontem ou de hoje, mas o de amanhã. E assim foi concebido e assim nasceu, repleto de sonhos, avisos e pressentimentos. A cidade utopia, a cidade aérea do futuro a construir no deserto siberiano.
A estreia verificou-se a 6 de Novembro de 1935.
Polémico como vinham sendo todos os seus filmes, provocou o tipo de reacções
contraditórias que, de nenhum modo, desagradavam a Dovjenko. Ele, aliás,
sentia-se agora muito mais seguro com o seu prestígio bem firmado, após ter
sido agraciado com a Ordem de Lenine, em Fevereiro desse ano, em sessão do
Soviete Supremo dedicada aos trabalhadores de cinema. Nesse dia ficou
determinado qual seria o seu futuro filme, quando Estaline mostrou interesse
por um Tchapaiev ucraniano e lhe
sugeriu o nome de Chtchors.
A recolha de material começou
ainda durante as filmagens de Aerogard.
Ele começou por desejar que Vichnevski, escritor de temas militares, escrevesse
o cenário, para mais, tendo tomado parte na guerra civil da Ucrânia. Mas, como
sempre, acabou por querer ser ele próprio a fazê-lo. Regressou a Kiev, aos
estúdios Ukraniafilm, mas agora com uma autoridade que antes não tinha, como
director artístico, impondo a sua personalidade e as suas convicções, atencioso
para quem tinha talento, intolerante para quem o não tinha ou para quem o
cinema era apenas um modo de ganhar dinheiro.
Chtchors foi um parto deveras difícil. Toda a gente parecia saber
melhor do que ninguém o que o filme devia e não devia ser, inclusive o próprio
Estaline, inicialmente extremamente aberto, mais tarde perigosamente
desconfiado. Mas Dovjenko, que fez, desfez e refez o cenário que levou onze
meses a escrever, e que prolongou as filmagens por vinte meses, resistiu às
pressões, até ao medo de ter sido acusado de conspirador nacionalista. O seu
Nikolai Chtchors, herói ucraniano, chefe dos guerrilheiros que lutaram contra
os ocupantes alemães e os traidores da Petliura, não foi deturpado ou
desumanizado, muito embora se lhe possa apontar o ser, por vezes, demasiado
positivo.
Chtchors é um filme extremamente bem construído, coerente, sentido,
sem devaneios ou inúteis desvios, por vezes romântico, por vezes lírico, quase
sempre épico, com uma portentosa sequência inicial, absolutamente antológica do
cinema dovjenkiano. Uma obra prima do realismo socialista, um clássico do
cinema soviético.
Estreou-se
no dia 1 de Abril de 1939, em Kiev, e no dia 1 de Maio desse mesmo ano, em Moscovo. Foi a última
realização de Dovjenko antes do desencadear da guerra.
III
Na madrugada do dia 1 de Setembro
de 1939, às 4h.45m, as tropas da Alemanha Nazi invadiram a Polónia. Começava, assim,
a II Grande Guerra Mundial, que só terminaria seis intermináveis e terríveis
anos mais tarde.
Dirigida por um governo
reaccionário, encostado a um exército afastado do povo, a Polónia estava
praticamente vencida em meados desse mesmo mês, apesar do indesmentível,
heroísmo, coragem e capacidade de resistência bem demonstrada por algumas
unidades militares e pela população civil.
Perante o avanço impetuoso e
ameaçador dos invasores alemães, o exército soviético, em defesa das fronteiras
do seu próprio país e salvaguardadas regiões
e populações ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia que, após a guerra
civil que sucedeu à revolução de Outubro, tinham ficado sob o domínio da
burguesia capitalista e latifundiária polaca, invadiu, por sua vez, a Polónia e
ocupou esses territórios. Hitler, apanhado de surpresa e ainda inseguro da sua
força, aceitou, na altura, o inesperado revés.
No mês seguinte, em Outubro de
1939, na Ucrânia Ocidental e na Bielorrússia Ocidental, realizaram-se eleições para as assembleias populares, as quais instauraram o poder dos sovietes e pediram a sua integração na URSS, passando a fazer parte dos povos soviéticos.
A evocação de tais acontecimentos
justifica-se pelo facto de Dovkenko, que os seguiu atentamente, se ter
deslocado oficialmente à Ucrânia libertada e sobre eles ter realizado um
documentário, a partir de um guião da sua autoria, que incidia principalmente
na reunificação ucraniana. Ao filme que ele próprio montou, chamou-lhe Libertação.
Em 1940, Dovjenko anunciara no Izvestia de 1 de Junho,
a sua intenção de realizar um filme sobre Tarass Bulba. A redacção do cenário,
interrompida com a montagem de Libertação,
terminou-a ele três semanas antes do traiçoeiro ataque dos alemães e o filme
nunca chegou a ser rodado.
O ataque das forças nazis
verificou-se na madrugada do dia 22 de Junho de 1941. Na manhã desse dia,
estupefactos, os soviéticos ouviram Molotov anunciar na rádio, a perfídia sem precedentes na história das
nações civilizadas. O geral atordoamento em que ficou o país, não
impeditivo embora da coragem e estoicismo com que foi resistindo ao inimigo, só
verdadeiramente abrandou quando alguns dias depois, a 3 de Julho, Estaline,
finalmente, se dirigiu aos seus concidadãos: Um grave perigo pesa sobre a nossa pátria… O exército e a marinha assim
como todos os cidadãos devem defender cada palmo do território soviético, lutar
até à última gota de sangue pelas
nossas cidades e aldeias…
Seguindo o exemplo de todas as camadas sociais e
profissionais da população, os cineastas, na frente e na retaguarda, com maior
ou menor continuidade, com mais ou menos dificuldades e perigos, cerraram
fileiras, mobilizaram recursos, e ergueram uma cinematografia de guerra de
grande eficácia, altamente vigorosa, fortemente mobilizadora e moralizante, não
só no âmbito das actualidades e documentários, como nos filmes de ficção.
Devido à invasão os estúdios
cinematográficos das zonas europeias foram evacuados para as repúblicas
asiáticas. A Mosfilm e a Lenfilm instalaram-se em Alma-Ata e os estúdios
ucranianos em Tachkent e Achkabad. Dovjenko não acompanhou a evacuação do
estúdio de que era director artístico, recusando essa espécie de exílio, embora
não ficasse em Kiev onde o seu apartamento foi saqueado e dinamitado. Conseguiu
ir para a frente como correspondente de guerra, tendo-lhe sido dada a patente
de coronel. Os seus artigos invadiram a pouco e pouco todos os jornais do país,
relatando recuo das forças soviéticas, assim como, mais tarde, o volta-face, a
desforra, a vitória.
Os anos de guerra foram, para
ele, de grande produção literária. Escreveu artigos, contos, novelas, peças de
teatro, cenários de filmes. São desse período, para além de muitos outros
textos: Alto, espera morte (1941), Ucrânia em chamas (1942), A noite antes da batalha (1942), A mãe Stoiane (1943), A vitória (1943), Mitchurine (1944) e Crónica
dos anos de fogo (1945), sendo que estes dois últimos iriam dar origem a
dois filmes.
Termino Mitchurine. Quanto mais escrevo, mais penso sobre o que escrevi
e mais gosto deste homem… identifico-me com ele, que me seja desculpada uma tal
comparação. São palavras de Dovjenko, lançadas, em 22 de Novembro de 1944,
no seu Diário, onde no ano seguinte, a 17 de Julho, escrevia: Li a "Crónica dos anos de fogo" no
departamento dos cenários… deixou uma excelente impressão.
O único estúdio de cinema que frequentou durante a
guerra foi o Estúdio Central de Actualidades. Dele saíram os dois documentários
de guerra que figuram na sua filmografia:
A luta pela
nossa Ucrânia Soviética
(1943) e Vitória na Ucrânia
e
expulsão dos alemães das fronteiras da
Ucrânia Soviética (1945). São duas
obras de responsabilidade colectiva, mas têm a sua marca e são o seu testemunho
sobre a guerra.
Ele
teve, aliás, ocasião, na altura, de falar sobre a sua experiência de
documentarista: Precisávamos de planos
que mostrassem a lama, o género de planos que os realizadores evitam, não sem
discutir com os operadores. Só por si
essas imagens nada significavam, mas através da sua ligação enchiam-se
de significado na medida em que queríamos mostrar os obstáculos com que a nossa
ofensiva de 1944 deparou na margem esquerda ucraniana. Agora são acompanhadas
de um comentário que recorda como esses espaços infinitos foram lavados com o
sangue do nosso povo como os campos pelas chuvas primaveris como eles viram
decidir-se o destino da humanidade, pois foi aqui que a arte militar alemã foi
vencida, foi aqui que a libertação da Europa foi assegurada. Assim estes vastos
lençóis de lama surgem-nos cheios de valor. Não temos nenhuma necessidade de
ênfase para exprimir uma emoção profunda, o patético pode ser dado não por
gritarias mas por documentos reunidos com arte e com sinceridade.
IV
Terminada a guerra, Dovjenko instalou-se em Moscovo. Seu pai
morrera brutalizado pelos alemães,
apesar da sua idade avançada, a mãe trouxe-a de Kiev onde a encontrara vivendo
em condições infra-humanas. Restavam-lhe cerca de 11 anos de vida.
Como foi possível que durante
esse último período da sua existência só tivesse realizado um filme, Mitchurine?
Mitchurine foi, primeiro, uma peça de teatro intitula, A vida entre flores, cuja estreia se
verificou em 1946. Do caderno de apontamentos deixado por Dovjenko, pode
ler-se: 2-4-46. No dia 29 de Março li
"A vida entre flores" na União de Escritores… Três horas de leitura.
As pessoas escutaram como hipnotizadas. Somente no fim reparei como todas estavam
excitadas e comovidas…. Aplaudiram-me largamente… Senti-me no entanto muito
triste. Havia em tudo aquilo algo que se assemelhava a uma demonstração. As
pessoas que estavam à minha frente… regozijavam-se porque eu não me tornara um
impotente mental, um lacaio, porque eu não amaldiçoara o universo.
Mitchurine, só depois
foi um guião e, mais tarde, um filme, o seu primeiro e único filme a cores, e o
seu último filme. Estreou-se no dia 1 de Janeiro de 1949, após uma rodagem
iniciada em 1947 que deparou com imensos escolhos. A primeira versão,
fundamentalmente lírica, recebeu críticas severas e deu origem a uma segunda
versão, mais convencional, mais oficial, que, de certo modo, Dovjenko
desprezou.
Mitchurine é um filme biográfico, que foca a figura do agro-biólogo
russo, Ivane Vladimirovitch Mitchurine (1855-1935) que, após a revolução de
Outubro e graças ao que lhe foi concedido pelo governo, pôde dedicar toda a sua
vida à investigação. As suas teorias foram, mais tarde retomadas, desenvolvidas
e divulgadas por outro cientista, Trofime Demissovitch Lissenko, e foi a
polémica que estalou à volta de Lissenko e dos seus trabalhos, dentro e fora da
União Soviética, de cunho científico, mas também ideológico e político, que
constituiu o factor altamente perturbador que tanto afectou a realização do
filme, que de um momento para o outro se transformou no centro de preocupações
e interesses que pouco ou nada tinham a ver com a arte cinematográfica.
Mitchurine saiu, pois, um filme desequilibrado, com sequências cuja
beleza e pujança honram o seu autor e cenas intervalares que, por retóricas e
vulgares,
denunciam
a sua ausência e desinteresse. E se o filme saiu como saiu, Dovjenko, por seu
lado, não saiu com uma imagem mais desanuviada do que aquela que já tinha.
Leia-se, por exemplo, o que escreveu no seu caderno de apontamentos: 10-8-53. A perversidade de Béria, indiscutivelmente
um fácies sinistro e repulsivo do nosso tempo. Recordo-me do seu rosto
diabólico quando me chamou para um severo, terrível julgamento, a propósito de
algumas frases infelizes, inexactas, que tinham sido insinuadas, segundo o
próprio Estaline, no meu cenário "Ucrânia em chamas".
Não admira, pois, que após Mitchurine, tenham sido recusados todos os seus projectos
cinematográficos. Inclusive, um filme cuja realização, segundo parece, chegou a
iniciar, foi interrompido e nunca chegou a ser visto: Adeus, América. Dedicou-se, então, ao ensino e à escrita.
Entre 1950 e 1954, escreveu, pelo
menos, três cenários: A abertura do
Antártico, baseado no diário de Thadeus Bellinghausen (1819); Nos confins do cosmos, relato de uma
viagem interplanetária; O Desna
encantado, uma autobiografia da sua infância; e uma peça de teatro, Os descendentes dos Cossacos-Zaparogues.
E foi mantendo em dia o seu caderno de apontamentos: Faço hoje sessenta anos… se sinto amargura? Não. O céu está puro e o ar
transparente. Bendigo a vida grande e bela que me deu tais presentes. Hoje amo
todos os homens. Amo o meu governo, amo o meu partido e trago comigo o seu
significado, os seus fins, o seu dever perante o mundo. Com um amor fervente
amo o povo do meu país. Muitas tempestades se apagaram do meu coração, só uma
ficou para sempre, a paixão ética. E por isso bendigo o meu destino e a minha
época.
Finalmente, entre 1954 e 1956, iniciou a minuciosa
preparação de um novo filme: O poema do
mar. Naquela que foi a sua última entrevista, dada a Georges Sadoul,
revelou que o filme era o último de uma trilogia, a história da construção de
uma barragem cujas águas submergem uma aldeia. Começava, pois, pelo fim. A
primeira parte decorreria em 1930, durante a colectivização. E a segunda
trataria da resistência dos habitantes da aldeia face aos alemães durante a
Grande Guerra.
Na véspera do dia marcado para
dar início à rodagem, o coração de Dovjenko deixou de bater. Era o dia 26 de
Novembro de 1956.
Não foi inesperada a crise
cardíaca que o vitimou, pois o seu coração há muito que vinha falhando, mas a
sua morte nem por isso deixou de ser amarga e dolorosamente sentida e chorada
por todos os que conheciam e amavam o artista e, mais amplamente por todos os
que conheciam e amavam a sua obra.
Foi um crime lesa cinema o
destino não lhe ter permitido a realização de O poema do mar. Muito embora a sua mulher, Iulia Solntseva, ao
realizá-lo, tenha conseguido um belíssimo trabalho, de uma integral fidelidade
à letra e ao espírito do autor, O poema
do mar, de Dovjenko, ficou
perdido para sempre.
Iulia Solntseva realizou ainda
duas outros obras de Dovjenko: Crónicas
dos anos de fogo (1961) e Desna
encantado (1963), numa linha de pensamento e acção sempre
intransigentemente fiel à escola de Dovjenko. Foi uma das mais importantes
homenagens à memória do artista, a juntar ao prémio Lenine, atribuído a título
póstumo em 1959, e a determinação de dar aos estúdios de Kiev o nome de
Aleksandr Dovjenko.
Sonhei com a realização de uma
retrospectiva integral da obra cinematográfica de Dovjenko. Foi apenas um
sonho!
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