27 de agosto de 2017

ESCRITOS (8)

Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia Soviética
Bio-filmografia publicada no catálogo, CICLO DO CINEMA CLÁSSICO SOVIÉTICO, da Cinemateca Nacional, evento efectuado de parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987


Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia Soviética

I

               Aleksandr Piotrovitch Dovjenko, nome completo dum artista ucraniano, pintor, escritor, mas, principalmente, cineasta de grande prestígio.
               Não tendo sido, embora, o introdutor do cinema na Ucrânia, foi, na realidade, o pai do cinema ucraniano, que, verdadeiramente, nasceu com Zvenigora, cresceu com Arsenal e atingiu a maioridade com A terra.
               Dovjenko só cinematizou o que ele próprio escreveu e, para o cinema, ele só escreveu, sobre a Ucrânia, sobre a terra ucraniana, sobre o povo ucraniano. Nacionalismo extremo? De modo algum! Apenas honestidade de quem só fala do que conhece e sabe. Aliás, o discurso de Dovjenko foi sempre de total identificação com a pátria socialista e soviética e, por isso mesmo, ele foi também um dos mestres incontestados do cinema nascido da revolução.
             Dovjenko nasceu há noventa anos, no dia 11 de Setembro de 1894, em Sosnitsy, pequena aldeia ucraniana, marginal do rio Desna, na região de Tchernigov, filho de camponeses pobres e iletrados.
               Estudou as primeiras letras no colégio da sua aldeia natal, fez o secundário e frequentou a escola normal dos professores primários.
                 Isento do serviço militar devido à sua saúde delicada, salvou-se da mobilização de 1914.
               De 1914 a 1917 foi mestre escola em Jitomir e depois em Kiev. Nesta última cidade foi também, e simultaneamente, aluno da faculdade de Hi stória Natural e do Instituto de Economia Comercial.
               Ainda em Kiev, após a retirada dos polacos que a tinham ocupado em Maio de 1920, durante a guerra polaco-soviética que só veio a terminar em 18 de Março de 1921
com o tratado de Riga, Dovjenko participou na organização da secção de Kiev do Comissariado do Povo para a educação e foi secretário da direcção, dirigindo o sector urbano. Ao mesmo tempo tornou-se funcionário da administração local da educação popular.
            Em 1921 foi transferido para Kharkov, para prestar serviço no Comissariado do Povo dos Negócios Estrangeiros. Kharkov era na altura a capital da República Socialista Soviética da Ucrânia., fundada em 25 de Dezembro de 1917 por decisão do I Congresso Pan-Ucraniano dos Sovietes, em oposição à república proclamada em Kiev, em Novembro do mesmo ano, pela Rada Central, organização nacionalista da burguesia reaccionária.
                Integrado no corpo diplomático, foi enviado primeiro para Varsóvia e mais tarde para Berlim, onde trabalhou nos respectivos consulados durante cerca de dois anos.
             Em Berlim estudou pintura com o professor Heckel e quando, em fins de 1923, regressou a Kharkov, dedicou-se à pintura e ao desenho, tendo sido caricaturista e ilustrador do jornal Visi.
               Finalmente, em 1925, então com 31 anos, desgostoso com as fracas audiências que a pintura e o desenho pareciam atrair, não sabendo nada de cinema, mas obcecado com as imagens animadas vistas, ocasionalmente, abandonou tudo e todos, inclusivamente, a casa onde vivia, e partiu para Odessa.                                                              
   A reorganização do cinema na Ucrânia após a revolução, a guerra civil e a intervenção estrangeira, passou pela criação, em 1922, da Direcção Pan-ucraniana da Fotografia e do Cinema, VUFKU, que construíra em Odessa, uma pequena cidade onde funcionava o centro da actividade cinematográfica. Dovjenko não teve dificuldade em ser admitido no seio dos trabalhadores de cinema e, em 1926, pela primeira vez, inscreveu o seu nome num filme, como argumentista. Uma comédia intitulada, Vassia o reformador, que se estreou a 17 de Julho. E ainda nesse ano, em Ialta, já como realizador, filmou uma segunda comédia, também escrita por si, chamada, O pequeno fruto do amor. Dois pequenos filmes que ele não incluiu na sua filmografia, o que já não aconteceu com o terceiro, A mala do correio diplomático, onde pela primeira e única vez figura entre os intérpretes, um filme de aventuras, baseado num acontecimento verídico.
               Finalmente, a sua quarta realização, Zvenigora, que ele sempre considerou ser, verdadeiramente, a sua primeira obra, e sobre a qual declarou: Zvenigora permitiu-me julgar da minha capacidade de fazer filmes… Foi o catálogo de todas as minhas possibilidades de criador. Estreou-se em Kiev, no dia 13 de Abril de 1928, e em Moscovo, no dia 8 do mês seguinte, e para a qual a VUFKU, insegura quanto a um filme que ninguém parecia compreender, convidou Eisenstein e Pudovkine, cuja autoridade no campo cinematográfico era já incontestável. Ambos assistiram à projecção e foram apresentados  àquele realizador desconhecido. Eisenstein, mais tarde, escreveu um artigo sobre o acontecimento, que intitulou, O nascimento de um génio.
                   Zvenigora é a história da Ucrânia, desde os tempos mais remotos até à revolução, concebida numa sucessão de episódios, ora fantásticos ora realistas, repletos de símbolos, alegorias e de pistas. Filme de difícil leitura para quem não conhecesse, profundamente, a história do país, mas que a todos se impunha pelo fascínio da sua poesia, do seu lirismo, pelo seu sopro épico, e muito também pela sua excentricidade, qualidades que, em maior ou menor grau, irão estar sempre presentes nas obras de Dovjenko.
               Nesse ano de 1928, conheceu e casou com a actriz Iulia Solntseva que se estreara no cinema em 1924 como protagonista do filme Aelita, baseado no romance homónimo de Alexei Tolstoi, realizado por Iakov Protazanov. A íntima e profunda colaboração entre ambos vai durar toda a vida do artista e prolongar-se-à, mesmo, para além dela, pois será Iulia Solntseva que já depois da morte de Dovjenko, irá dirigir as filmagens dos três últimos argumentos que ele escreveu e preparou: O poema do mar (1958), Crónica dos anos de fogo (1961) e O Desna encantado (1963).
               A sua quinta realização, Arsenal, de 1929, é um poema sobre a revolução na Ucrânia. O principal personagem do filme é o já conhecido, Timoch, o jovem camponês de Zvenigora. Timoch, que se tornou guarda vermelho, esteve na guerra de 1914, e que em Janeiro de 1918 é operário e encabeça a greve e insurreição no estaleiro fabril do Arsenal, em Kiev. A história dessa greve e dessa insurreição afogadas em sangue, é o principal episódio do filme. Os operários são chacinados, mas já nada nem ninguém travará a revolução. Simbolicamente, Timoch, dando o peito descoberto às forças da repressão, será baleado repetidamente, mas mantém-se de pé, invulnerável, invencível, vivo.
Tendo-se estreado em 25 de Fevereiro, em Kiev, e em 26 de Março, em Moscovo,  Arsenal  suportou  bem  as  reticências  de  alguns críticos e ganhou, sem s favores do público. Com ele Dovjenko confirmou todas as esperanças que fizera nascer com Zvenigora.                                                                                                                                              
Filho do campo e filho extremoso, Dovjenko não podia ignorar a colectivização das terras ucranianas e foi ela o tema do seu sexto filme, A terra, realizado em Kiev e nessa mesma cidade estreado, no dia 8 de Abril de 1930.
               A terra, que foi o seu último filme mudo, é geralmente considerado a sua melhor obra e uma indiscutível obra-prima, muito embora, também ele, dentro e fora do país, não escapasse às críticas e incompreensões dos que sobrepunham a retórica política e ideológica à arte, e Dovjenko tenha sido acusado de idealismo e até de terrorismo.
               O jovem camponês Timoch de Zvenigora, que depois de ter sido soldado virara operário em Arsenal, chama-se em A terra, Vassili, trabalha no campo e é tractorista. O mesmo actor, Semione Svachenko, desempenha essas personagens nos três filmes e, certamente, não por acaso. Camponês, soldado, operário, tantos e um só: o jovem revolucionário ucraniano que luta, até à morte, pela vida e felicidade do seu povo e da sua pátria, no campo de batalha, na fábrica, no kolkhos.
               É na organização de um kolkhos, na sua aldeia, que Vassili trabalha afincadamente até à sua morte, assassinado a tiro por um kulak, e é a emoção e indignação que a tragédia provoca, que irá despertar os aldeões e empurrá-los, definitivamente, para a vida colectiva.
               A morte é um tema muito constante e de muito peso nos filmes de Dovjenko. Mas ela, na sua inevitabilidade, nunca é apresentada como um fim, mas, pelo contrário, anuncia sempre a vinda de algo de novo e de melhor.
               Num artigo necrológico sobre Dovjenko, da autoria de Ivor Montagu, publicado na revista Sight and Sound, no verão de 1957, diz o crítico com muita propriedade: Os mortos cobrem os filmes de Dovjenko. Nunca outro artista em qualquer arte, soube tão bem dilacerar os nossos corações. Mas, em Dovjenko, nenhuma morte é fútil.
               Com, A terra, encerra-se a primeira fase da actividade cinematográfica de Aleksandr Dovjenko.

II

               Em 1931, em viajem pela Europa, acompanhado pela mulher, Dovjenko, com o seu último filme na bagagem, apresentou A terra, em Paris, Londres, Berlim, Praga.
O sucesso foi incontestável, com a fita a ser unanimemente aplaudida, embora a nível do grande público a aceitação tenha sido claramente limitada pelo advento do sonoro.
               Já após o falecimento de Dovjenko, em 1958, o filme teve a sua grande consagração ao ser considerado como um dos doze melhores de todos os tempos. À margem do Festival Internacional de Cinema que, nesse ano de 1958, decorreu em Bruxelas, durante a Exposição Universal, levada a efeito na capital belga, um júri de 117 historiadores e críticos ligados ao departamento internacional de pesquisa histórica cinematográfica, foi convidado a seleccionar e classificar os trinta melhores filmes de todos os tempos. O apuramento dos 117 boletins deu origem a uma lista de 609 títulos, da qual o comité organizador retirou e publicou os doze mais votados. Três eram soviéticos: O couraçado Potiomkine, de Serguei Eisenstein, o primeiro, A mãe, de Vsevolod Pudovkine, o oitavo, A Terra, o décimo.
               Durante os quatro meses e meio que esteve no estrangeiro, Dovjenko teve ocasião de expor e discutir os princípios que norteavam o seu cinema. O resumo que deles deu, em Paris, à Revue du Cinema, transcreve-os Jay Leyda no seu Kino-Histoire du Cinema Russe e Soviétique: "Não é a história quem interessa. Considero-a apenas como   

o meio mais eficaz de exprimir e de pintar formas sociais importantes. É por isso que trabalho com documentos típicos, aplicando o método de síntese. Os meus heróis, e o seu comportamento são representativos da classe          
a que pertencem. Por vezes a documentação dos meus filmes está concentrada em alto grau e ao mesmo tempo, faço--a passar pelo prisma da emoção que lhe dá vida e, por vezes, eloquência. Não posso ficar indiferente perante esses documentos. É necessário amar, ou odiar, muito e com força; sem isso uma obra fica seca e dogmática.
               Regressado à Ucrânia, Dovjenko pensava, para o seu primeiro filme sonoro, nma história passada no Ártico, nas regiões polares, que, no entanto, não teve aceitação. Os estúdios de Kiev propuseram-lhe, antes, um filme sobre a industrialização o que o levou a escrever um argumento cujo pano de fundo era a construção da barragem do Dniepr. O filme chamou-se, Ivane, e foi estreado em Moscovo, no dia 6 de Novembro de 1932, no âmbito das comemorações do 15º aniversário da Revolução de Outubro.
               O fio do cenário é extremamente simples, o jovem Ivane, camponês vigoroso, bem parecido e analfabeto, sai da sua aldeia e é recrutado para ir trabalhar na construção de um barragem onde vai ser instalada uma central hidro-eléctrica. Transformando-se, gradualmente, num operário, Ivane vai tomando consciência da sua ignorância e resolve dedicar-se ao estudo, para assim vir a ser, verdadeiramente, senhor do seu destino. Ivane é assim o símbolo de todo o povo, o povo soviético, a lutar e trabalhar pelo seu futuro. Mas a narrativa fílmica saiu complexa e difícil de seguir, muito ao estilo habitual de Dovjenko: despreocupação no desenvolvimento do enredo básico, com muitos cortes, interrupções e desvios, com episódios que, aparentemente, mas só aparentemente, nada têm com a acção principal, e grande relevo dado ao movimento das grandes ideias e à dinâmica dos processos sociais, através de cenas exteriores de grande amplitude e beleza.
               O filme foi considerado um falhanço e criticado com alguma incompreensão, o que levou Dovjenko a virar as costas ao mau ambiente que o rodeava em Kiev, e a abalar para Moscovo, trocando a Ukraniafilm pela Mosfilm.
               Aos estúdios moscovitas Dovjenko começou por propor a realização de um filme sobre o Tsar, uma tragicomédia sobre a agonia do tsarismo russo, a degeneração da família Romanov e as intrigas da corte imperial, mas a proposta não teve acolhimento. A alternativa que lhe foi oferecida, uma fita sobre a 1ª Grande Guerra, foi por sua vez recusada. Mais tarde nasceu a ideia de um filme sobre a Sibéria, baseado num cenário escrito por Aleksandr Fadeiev, que Dovjenko comentou com Vichnevski com quem, entretanto, estabelecera traços de amizade. Avançou com a ideia, mas para a fazer vingar viu-se na necessidade de recorrer ao próprio Estaline, a quem escreveu, que o chamou ao Kremlin, ouviu-lhe a exposição e deu o seu acordo ao projecto siberiano.
               Partiu para o Extremo Oriente, em Setembro de 1933, e por lá andou durante cerca de quatro meses. O material recolhido levou-o a repensar todo o cenário e a desistir de Fadeiev. Regressado a Moscovo escreveu em dois meses e meio o argumento de, Aerograd. O oriente, belo, exótico e rico, era também um dos pontos mais vulneráveis da União Soviética. A memória da guerra com o Japão ainda estava muito viva, Vladivostok só fora libertada em 1922, e os japoneses ocupavam agora a Manchúria, a ser transformada em base militar de agressão. 
               Dovjenko pensava e, expressamente, o declarou no encontro nacional dos cineastas, em 1935, que haveria guerra, dentro de poucos anos, e que era necessário preparar as armas para a batalha. Aerograd, estava na linha dos filme chamados de defesa. Ele tinha de retratar não o oriente de ontem ou de hoje, mas o de amanhã. E assim foi concebido e assim nasceu, repleto de sonhos, avisos e pressentimentos. A cidade utopia, a cidade aérea do futuro  a construir no deserto siberiano.            
               A estreia verificou-se a 6 de Novembro de 1935. Polémico como vinham sendo todos os seus filmes, provocou o tipo de reacções contraditórias que, de nenhum modo, desagradavam a Dovjenko. Ele, aliás, sentia-se agora muito mais seguro com o seu prestígio bem firmado, após ter sido agraciado com a Ordem de Lenine, em Fevereiro desse ano, em sessão do Soviete Supremo dedicada aos trabalhadores de cinema. Nesse dia ficou determinado qual seria o seu futuro filme, quando Estaline mostrou interesse por um Tchapaiev ucraniano e lhe sugeriu o nome de Chtchors.
               A recolha de material começou ainda durante as filmagens de Aerogard. Ele começou por desejar que Vichnevski, escritor de temas militares, escrevesse o cenário, para mais, tendo tomado parte na guerra civil da Ucrânia. Mas, como sempre, acabou por querer ser ele próprio a fazê-lo. Regressou a Kiev, aos estúdios Ukraniafilm, mas agora com uma autoridade que antes não tinha, como director artístico, impondo a sua personalidade e as suas convicções, atencioso para quem tinha talento, intolerante para quem o não tinha ou para quem o cinema era apenas um modo de ganhar dinheiro.
               Chtchors foi um parto deveras difícil. Toda a gente parecia saber melhor do que ninguém o que o filme devia e não devia ser, inclusive o próprio Estaline, inicialmente extremamente aberto, mais tarde perigosamente desconfiado. Mas Dovjenko, que fez, desfez e refez o cenário que levou onze meses a escrever, e que prolongou as filmagens por vinte meses, resistiu às pressões, até ao medo de ter sido acusado de conspirador nacionalista. O seu Nikolai Chtchors, herói ucraniano, chefe dos guerrilheiros que lutaram contra os ocupantes alemães e os traidores da Petliura, não foi deturpado ou desumanizado, muito embora se lhe possa apontar o ser, por vezes, demasiado positivo.
               Chtchors é um filme extremamente bem construído, coerente, sentido, sem devaneios ou inúteis desvios, por vezes romântico, por vezes lírico, quase sempre épico, com uma portentosa sequência inicial, absolutamente antológica do cinema dovjenkiano. Uma obra prima do realismo socialista, um clássico do cinema soviético.
               Estreou-se no dia 1 de Abril de 1939, em Kiev, e no dia 1 de Maio desse mesmo ano, em Moscovo. Foi a última realização de Dovjenko antes do desencadear da guerra.

III

               Na madrugada do dia 1 de Setembro de 1939, às 4h.45m, as tropas da Alemanha Nazi invadiram a Polónia. Começava, assim, a II Grande Guerra Mundial, que só terminaria seis intermináveis e terríveis anos mais tarde.
               Dirigida por um governo reaccionário, encostado a um exército afastado do povo, a Polónia estava praticamente vencida em meados desse mesmo mês, apesar do indesmentível, heroísmo, coragem e capacidade de resistência bem demonstrada por algumas unidades militares e pela população civil.
               Perante o avanço impetuoso e ameaçador dos invasores alemães, o exército soviético, em defesa das fronteiras do seu próprio país e salvaguardadas regiões  e populações ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia que, após a guerra civil que sucedeu à revolução de Outubro, tinham ficado sob o domínio da burguesia capitalista e latifundiária polaca, invadiu, por sua vez, a Polónia e ocupou esses territórios. Hitler, apanhado de surpresa e ainda inseguro da sua força, aceitou, na altura, o inesperado revés.
               No mês seguinte, em Outubro de 1939, na Ucrânia Ocidental e na Bielorrússia Ocidental, realizaram-se eleições para as assembleias populares, as quais instauraram o poder dos sovietes e pediram a sua integração na URSS, passando a fazer parte dos povos soviéticos. 
                                                                                                                                                                                   
                A evocação de tais acontecimentos justifica-se pelo facto de Dovkenko, que os seguiu atentamente, se ter deslocado oficialmente à Ucrânia libertada e sobre eles ter realizado um documentário, a partir de um guião da sua autoria, que incidia principalmente na reunificação ucraniana. Ao filme que ele próprio montou, chamou-lhe  Libertação.
               Em 1940, Dovjenko anunciara no Izvestia de 1 de Junho, a sua intenção de realizar um filme sobre Tarass Bulba. A redacção do cenário, interrompida com a montagem de Libertação, terminou-a ele três semanas antes do traiçoeiro ataque dos alemães e o filme nunca chegou a ser rodado.
               O ataque das forças nazis verificou-se na madrugada do dia 22 de Junho de 1941. Na manhã desse dia, estupefactos, os soviéticos ouviram Molotov anunciar na rádio, a perfídia sem precedentes na história das nações civilizadas. O geral atordoamento em que ficou o país, não impeditivo embora da coragem e estoicismo com que foi resistindo ao inimigo, só verdadeiramente abrandou quando alguns dias depois, a 3 de Julho, Estaline, finalmente, se dirigiu aos seus concidadãos: Um grave perigo pesa sobre a nossa pátria… O exército e a marinha assim como todos os cidadãos devem defender cada palmo do território soviético, lutar até à última gota de sangue pelas nossas cidades e aldeias…
               Seguindo o exemplo de todas as camadas sociais e profissionais da população, os cineastas, na frente e na retaguarda, com maior ou menor continuidade, com mais ou menos dificuldades e perigos, cerraram fileiras, mobilizaram recursos, e ergueram uma cinematografia de guerra de grande eficácia, altamente vigorosa, fortemente mobilizadora e moralizante, não só no âmbito das actualidades e documentários, como nos filmes de ficção.        
               Devido à invasão os estúdios cinematográficos das zonas europeias foram evacuados para as repúblicas asiáticas. A Mosfilm e a Lenfilm instalaram-se em Alma-Ata e os estúdios ucranianos em Tachkent e Achkabad. Dovjenko não acompanhou a evacuação do estúdio de que era director artístico, recusando essa espécie de exílio, embora não ficasse em Kiev onde o seu apartamento foi saqueado e dinamitado. Conseguiu ir para a frente como correspondente de guerra, tendo-lhe sido dada a patente de coronel. Os seus artigos invadiram a pouco e pouco todos os jornais do país, relatando recuo das forças soviéticas, assim como, mais tarde, o volta-face, a desforra, a vitória.
               Os anos de guerra foram, para ele, de grande produção literária. Escreveu artigos, contos, novelas, peças de teatro, cenários de filmes. São desse período, para além de muitos outros textos: Alto, espera morte (1941), Ucrânia em chamas (1942), A noite antes da batalha (1942), A mãe Stoiane (1943), A vitória (1943), Mitchurine (1944) e Crónica dos anos de fogo (1945), sendo que estes dois últimos iriam dar origem a dois filmes.
               Termino Mitchurine. Quanto mais escrevo, mais penso sobre o que escrevi e mais gosto deste homem… identifico-me com ele, que me seja desculpada uma tal comparação. São palavras de Dovjenko, lançadas, em 22 de Novembro de 1944, no seu Diário, onde no ano seguinte, a 17 de Julho, escrevia: Li a "Crónica dos anos de fogo" no departamento dos cenários… deixou uma excelente impressão.
               O único estúdio de cinema que frequentou durante a guerra foi o Estúdio Central de Actualidades. Dele saíram os dois documentários de guerra que figuram na sua filmografia:  A luta  pela  nossa  Ucrânia  Soviética  (1943) e Vitória  na  Ucrânia e                                                                                                                            
expulsão dos alemães das fronteiras da Ucrânia Soviética (1945). São duas obras de responsabilidade colectiva, mas têm a sua marca e são o seu testemunho sobre a guerra.
Ele teve, aliás, ocasião, na altura, de falar sobre a sua experiência de documentarista: Precisávamos de planos que mostrassem a lama, o género de planos que os realizadores evitam, não sem discutir com os operadores. Só por si  essas imagens nada significavam, mas através da sua ligação enchiam-se de significado na medida em que queríamos mostrar os obstáculos com que a nossa ofensiva de 1944 deparou na margem esquerda ucraniana. Agora são acompanhadas de um comentário que recorda como esses espaços infinitos foram lavados com o sangue do nosso povo como os campos pelas chuvas primaveris como eles viram decidir-se o destino da humanidade, pois foi aqui que a arte militar alemã foi vencida, foi aqui que a libertação da Europa foi assegurada. Assim estes vastos lençóis de lama surgem-nos cheios de valor. Não temos nenhuma necessidade de ênfase para exprimir uma emoção profunda, o patético pode ser dado não por gritarias mas por documentos reunidos com arte e com sinceridade.

IV

               Terminada a guerra, Dovjenko instalou-se em Moscovo. Seu pai morrera  brutalizado pelos alemães, apesar da sua idade avançada, a mãe trouxe-a de Kiev onde a encontrara vivendo em condições infra-humanas. Restavam-lhe cerca de 11 anos de vida.
               Como foi possível que durante esse último período da sua existência só tivesse realizado um filme, Mitchurine? 
               Mitchurine foi, primeiro, uma peça de teatro intitula, A vida entre flores, cuja estreia se verificou em 1946. Do caderno de apontamentos deixado por Dovjenko, pode ler-se: 2-4-46. No dia 29 de Março li "A vida entre flores" na União de Escritores… Três horas de leitura. As pessoas escutaram como hipnotizadas. Somente no fim reparei como todas estavam excitadas e comovidas…. Aplaudiram-me largamente… Senti-me no entanto muito triste. Havia em tudo aquilo algo que se assemelhava a uma demonstração. As pessoas que estavam à minha frente… regozijavam-se porque eu não me tornara um impotente mental, um lacaio, porque eu não amaldiçoara o universo.
               Mitchurine, só depois foi um guião e, mais tarde, um filme, o seu primeiro e único filme a cores, e o seu último filme. Estreou-se no dia 1 de Janeiro de 1949, após uma rodagem iniciada em 1947 que deparou com imensos escolhos. A primeira versão, fundamentalmente lírica, recebeu críticas severas e deu origem a uma segunda versão, mais convencional, mais oficial, que, de certo modo, Dovjenko desprezou.
               Mitchurine é um filme biográfico, que foca a figura do agro-biólogo russo, Ivane Vladimirovitch Mitchurine (1855-1935) que, após a revolução de Outubro e graças ao que lhe foi concedido pelo governo, pôde dedicar toda a sua vida à investigação. As suas teorias foram, mais tarde retomadas, desenvolvidas e divulgadas por outro cientista, Trofime Demissovitch Lissenko, e foi a polémica que estalou à volta de Lissenko e dos seus trabalhos, dentro e fora da União Soviética, de cunho científico, mas também ideológico e político, que constituiu o factor altamente perturbador que tanto afectou a realização do filme, que de um momento para o outro se transformou no centro de preocupações e interesses que pouco ou nada tinham a ver com a arte cinematográfica.                                                                   
               Mitchurine saiu, pois, um filme desequilibrado, com sequências cuja beleza e pujança honram o seu autor e cenas intervalares que, por retóricas e vulgares,                                                                                                                         
denunciam a sua ausência e desinteresse. E se o filme saiu como saiu, Dovjenko, por seu lado, não saiu com uma imagem mais desanuviada do que aquela que já tinha. Leia-se, por exemplo, o que escreveu no seu caderno de apontamentos: 10-8-53. A perversidade de Béria, indiscutivelmente um fácies sinistro e repulsivo do nosso tempo. Recordo-me do seu rosto diabólico quando me chamou para um severo, terrível julgamento, a propósito de algumas frases infelizes, inexactas, que tinham sido insinuadas, segundo o próprio Estaline, no meu cenário "Ucrânia em chamas".
               Não admira, pois, que após Mitchurine, tenham sido recusados todos os seus projectos cinematográficos. Inclusive, um filme cuja realização, segundo parece, chegou a iniciar, foi interrompido e nunca chegou a ser visto: Adeus, América. Dedicou-se, então, ao ensino e à escrita.
               Entre 1950 e 1954, escreveu, pelo menos, três cenários: A abertura do Antártico, baseado no diário de Thadeus Bellinghausen (1819); Nos confins do cosmos, relato de uma viagem interplanetária; O Desna encantado, uma autobiografia da sua infância; e uma peça de teatro, Os descendentes dos Cossacos-Zaparogues. E foi mantendo em dia o seu caderno de apontamentos: Faço hoje sessenta anos… se sinto amargura? Não. O céu está puro e o ar transparente. Bendigo a vida grande e bela que me deu tais presentes. Hoje amo todos os homens. Amo o meu governo, amo o meu partido e trago comigo o seu significado, os seus fins, o seu dever perante o mundo. Com um amor fervente amo o povo do meu país. Muitas tempestades se apagaram do meu coração, só uma ficou para sempre, a paixão ética. E por isso bendigo o meu destino e a minha época.
               Finalmente, entre 1954 e 1956, iniciou a minuciosa preparação de um novo filme: O poema do mar. Naquela que foi a sua última entrevista, dada a Georges Sadoul, revelou que o filme era o último de uma trilogia, a história da construção de uma barragem cujas águas submergem uma aldeia. Começava, pois, pelo fim. A primeira parte decorreria em 1930, durante a colectivização. E a segunda trataria da resistência dos habitantes da aldeia face aos alemães durante a Grande Guerra.
               Na véspera do dia marcado para dar início à rodagem, o coração de Dovjenko deixou de bater. Era o dia 26 de Novembro de 1956.
               Não foi inesperada a crise cardíaca que o vitimou, pois o seu coração há muito que vinha falhando, mas a sua morte nem por isso deixou de ser amarga e dolorosamente sentida e chorada por todos os que conheciam e amavam o artista e, mais amplamente por todos os que conheciam e amavam a sua obra.
               Foi um crime lesa cinema o destino não lhe ter permitido a realização de O poema do mar. Muito embora a sua mulher, Iulia Solntseva, ao realizá-lo, tenha conseguido um belíssimo trabalho, de uma integral fidelidade à letra e ao espírito do autor, O poema do mar, de Dovjenko, ficou perdido para sempre.
               Iulia Solntseva realizou ainda duas outros obras de Dovjenko: Crónicas dos anos de fogo (1961) e Desna encantado (1963), numa linha de pensamento e acção sempre intransigentemente fiel à escola de Dovjenko. Foi uma das mais importantes homenagens à memória do artista, a juntar ao prémio Lenine, atribuído a título póstumo em 1959, e a determinação de dar aos estúdios de Kiev o nome de Aleksandr Dovjenko.
               Sonhei com a realização de uma retrospectiva integral da obra cinematográfica de Dovjenko. Foi apenas um sonho!









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