Dossiê volumoso que me deu bastante trabalho, mas, como como se costuma proverbiar, quem corre por gosto não cansa. A apresentação que o inicia explica tudo.
APRESENTAÇÃO
Irreflectidamente, classifiquei-o de
teatro de cordel. Um acervo de cerca de cinco dezenas de folhetos quase todos
datando da segunda metade do século XIX, do espólio herdado do meu avô. Exemplares
que pelo seu mau aspecto e precário estado de conservação, bem pareciam ter
estado ao ar pendurados num cordel. Guardados e esquecidos, não me recordava de
alguma vez os ter visto, o que não aconteceria se eles tivessem sido, não
enfiados numa gaveta da secretária, mas arrumados no armário envidraçado das
cortinas verdes, poiso dos seus livros, que eu, ainda infante, em segredo
ilusório, receando a proibição que, aliás, nunca veio, cedo comecei a visitar.
Livros, todos eles de autores portugueses, assim me fui, gradualmente, apercebendo,
curiosamente mais de poesia que de teatro, mas onde predominava a prosa, e dela
a de Camilo. Essa prosa que bem cedo me atraiu e ainda hoje me seduz. No
entanto, as "jóias da coroa", e era para elas que os meus olhos se
sentiam atraídos, sempre que abria o armário, eram dois exemplares de Os Lusíadas, dois grossos e belos volumes, um mais alto mas menos bojudo,
encadernados em coiro e com muitos dourados, letras e desenhos. Dois livros
magníficos, ambos editados pela Imprensa Nacional, o primeiro de 1869, com
ensaio biográfico do visconde de Juromenha, e o segundo de 1931, prefaciado por
Carolina Michaelis de Vasconcelos e revisto e anotado por José Maria Rodrigues.
Na altura não lhes tocava, só mais tarde, mas sempre com a reverência e o
prazer com que ainda agora os manuseio.
Mas, voltando ao assunto, aos
herdados folhetos teatrais. Encontrei-os, mas faltando-me a pachorra para os
ler, sequer para um folhear minimamente atento, indiferente às autorias, tive,
mesmo assim, um rebate de sentimental respeito, e, depois de os desempoeirar e
limpar, arrumei-os em três caixas de cartão, encomendadas para o efeito, em
cuja lombada mandei gravar os dizeres: Teatro de Cordel.
Esqueci-os? Sim e não, pois,
esquecê-los de todo, não o consegui. Não mo permitiu o cartaz que os
acompanhava, ao qual não resisti, mandando-o emoldurar e expondo-o em lugar bem
à vista. Um cartaz que se apresentava, com algum requinte gráfico, como sendo
do Grupo Dramático César Marques, e que anunciava uma récita para
o dia 20 de Março de 1898, um domingo. O programa era extenso. Abria com a
declamação de uma poesia, “O Estudante
Alsaciano”, a que se seguiam três
peças de um acto, Uma Experiência, O Canalha e Os Trinta Botões, e dois entreactos, a cançoneta, Zás, Traz, Paz, e o monólogo, Os Três Soldados. Sobre os autores dos textos
nada constava, embora eu viesse a descobrir que o da peça Os Trinta Botões se chamava Eduardo Garrido. Do elenco faziam parte
os meus avós paternos, sendo o meu avô, porque não dizê-lo, a estrela da
companhia. Era ele que declamava a poesia e protagonizava as três peças, ou
seja, começava por poetizar, depois compunha o marinheiro José Borrasca, da
primeira peça, a seguir encarnava Carlos, o canalha, e terminava vestindo a
pele de um brasileiro, o proprietário Baía. A minha avó, modestamente, era
apenas a Rosa, a criada do tal Baía. Eram ambos muito novos, o meu avô tinha 19
anos e a minha avó 16, e estavam casadinhos de fresco. Cerca de oito anos
depois desse dia tão especial, tiveram o seu terceiro filho, meu pai.
Não me vou embrenhar em explicações
justificativas quanto ao meu actual e inesperado interesse, tantos anos
passados, por essas tão mal tratadas e esquecidas brochuras. Aconteceu! E muito
cedo me apercebi como fora precipitado ao classificá-las como o fiz. Na
verdade, era mais do que duvidoso que pudessem ser consideradas de teatro de
cordel. Todas elas, pelo menos! Debruçando-me sobre o assunto, recorrendo, como
é devido, aos especialistas, aos estudiosos que sobre ele se têm pronunciado,
aprendi que o teatro de cordel não é um género dramático, mas antes uma
designação bibliográfica que se aplica a todo um acervo de peças teatrais,
originais, imitadas ou traduzidas, sérias ou cómicas, românticas, históricas,
religiosas…, de grande aceitação popular pelo seu primarismo, que inundou o
panorama teatral português no século XVIII e primeiras décadas do século XIX,
cuja designação lhe advém da pobreza gráfica dos folhetos, impressos em fólio,
e postos à venda na rua pendurados em barbantes pregados nas paredes e nas
portas. Ao invés, o teatro dos folhetos que herdei, se revela, aqui e ali, em
muitas das peças, mas não todas, traços de vulgaridade e de fraco nível
literário, pertence quase todo ao segundo semestre do século XIX, apenas três
ou quatro ao primeiro decénio de século XX, o seu registo gráfico é razoável, e
insere-se ou é influenciado pelos movimentos literários então em vigor, o
romântico, o neo-romântico e o naturalista. Além do mais, todas as peças têm o
autor bem identificado, o que raramente acontece nas chamadas de cordel.
São, então, quarenta e oito peças,
para além de cinco almanaques e um catálogo que as acompanhavam, que resolvi
dar à estampa, chamando ao volume a que me abalancei e as acolhe, não teatro de
cordel, mas, sim, teatro esquecido, em vez de teatro ignorado, primeira opção
pensada, dado que algumas das peças envolvidas, embora não todas, e respectivos
autores, estão referenciados nos livros da especialidade e, também, por que, no
seu tempo, todas elas, mesmo as de mais fraca qualidade, além de editadas,
foram ou terão sido representadas.
Do espólio, apresento, então, uma
relação completa das peças, vinte e sete de um só acto, oito de dois actos,
quatro de três actos, e duas de cinco actos, além de sete entremezes – transcrevendo na íntegra os entremezes, e
excertos das restantes, e não esquecendo dados sobre os almanaques e o
catálogo, breves notas sobre os autores, e, também, sobre os principais teatros
então existentes.
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