Rosebud, fragmentos de biografias, de 2009
de Pierre Assouline, escritor francês, nascido em Casablanca, em 1953, jornalista, cronista, biógrafo, romancista.
Editado pela Bertrand, com tradução minha e da Helena, minha mulher, um livro que mal olhei para ele, lhe li o título, me fez recordar o filme, Citizen Kane, de Orson Welles, que entre nós se chamou, O mundo a seus pés. Certo é que não foi o mundo que Kane (Orson Welles) teve a seus pés, mas sim os verdadeiros amantes da arte cinematográfica. Mas porquê tal recordação? Porque Rosebud foi a última palavra pronunciada pelo magnata da imprensa americana Charles Foster Kane, ao morrer. E qual é o significado dessa palavra? Que esconde ela? Direi apenas que é algo, ou a imagem de algo, que pode ser tudo, real ou irreal, um sólido, uma gota de água, uma nuvem, algo bonito ou feio, grande ou pequeno, duro ou macio, agradável ou execrável, que um dia nos assombra e para sempre nos condiciona, o cérebro a alma, obrigando-nos a não esquecer o que se perdeu para sempre, o que nunca se conseguiu encontrar. Veja-se o filme!
Pierre Assouline viu o filme e por causa dele tornou-se um biógrafo, um investigador. O seu livro é, pois, o relato das suas buscas para encontrar o rosebud que cada um dos seus biografados, consciente ou inconscientemente, esconde. E eles são: Rudyard Kipling, escritor, Henri Cartier-Bresson, fotógrafo, Paul Celan, poeta, Jean Moulin, político, Lady Diana Spencer, princesa, Picasso, pintor, Pierre Bonnard, pintor..
Bem ou mal, penso, não será rosebud (botão de rosa, em português), apenas, a nossa consciência?
31 de agosto de 2017
30 de agosto de 2017
TRADUÇÕES: (3)
Manual do Estudante Eficiente, de 1993
de Francisco José Montes
Última tradução das seis que fiz para Livros Horizonte, que, confesso foi a que menos me seduziu.. O autor, madrileno, é doutorado em Comunicação Social e licenciado em Ciências da Imagem, estudou na Escola Técnica Superior de Engenheiros de Telecomunicações, leccionou na Faculdade
de Ciências da Informação e no Instituto Oficial de Rádio e Televisão, e foi director técnico da Universidade Nacional de Educação à Distância. Um currículo de peso que, pode-se deduzir, o capacitou a escrever um manual, sobre as diversas técnicas e métodos de que o estudante, que opta pela cábula em vez do estudo, se pode servir, para tentar obter êxito nos exames e alcançar um grau académico. Um livro de humor cínico, bem ilustrado, que, o autor o diz, tem por objectivo contribuir para um melhor entendimento entre professores e alunos, distraindo-os e divertindo-os.
Pergunto a mim próprio se, na realidade, este manual, a sua leitura, terá levado a alguma aproximação entre professores e alunos? Que divertiu uns e zangou e envergonhou outros, julgo que sim.
de Francisco José Montes
Última tradução das seis que fiz para Livros Horizonte, que, confesso foi a que menos me seduziu.. O autor, madrileno, é doutorado em Comunicação Social e licenciado em Ciências da Imagem, estudou na Escola Técnica Superior de Engenheiros de Telecomunicações, leccionou na Faculdade
de Ciências da Informação e no Instituto Oficial de Rádio e Televisão, e foi director técnico da Universidade Nacional de Educação à Distância. Um currículo de peso que, pode-se deduzir, o capacitou a escrever um manual, sobre as diversas técnicas e métodos de que o estudante, que opta pela cábula em vez do estudo, se pode servir, para tentar obter êxito nos exames e alcançar um grau académico. Um livro de humor cínico, bem ilustrado, que, o autor o diz, tem por objectivo contribuir para um melhor entendimento entre professores e alunos, distraindo-os e divertindo-os.
Pergunto a mim próprio se, na realidade, este manual, a sua leitura, terá levado a alguma aproximação entre professores e alunos? Que divertiu uns e zangou e envergonhou outros, julgo que sim.
29 de agosto de 2017
TRADUÇÕES: (2)
Cartas de Lisboa, 1822, de 1990
de José Pechio
Lisboa, Mítica e Literária, de 1990
de Ángel Crespo
Da mesma colecção, Cidade de Lisboa, de Livros Horizonte, a ambos traduzi e, para deles dar nota, aqui, a ambos os livros reuni.
José Pechio (1785-1835), italiano, nascido em Milão, doutor em Jurisprudência pela Universidade de Pavia, escritor sempre atento à realidade política, social, económica da sua época, um político paladino da liberdade, solidário com os povos que por ela lutavam, que esteve exilado em Lisboa, durante três meses, de 24 de Fevereiro a a 25 de Maio, no ano de 1822, donde escreveu 11 cartas à sua amiga Jenny, Lady O, falando de Lisboa, capital de um país ainda traumatizado pelas invasões francesas, saída de um período revolucionário, uma cidade suja, inculta, atrasada, mas habitada por um povo, acolhedor, simpático, corajoso e bonito.
Ángel Crespo, espanhol, nascido em La Mancha, no ano de 1926, escritor, tradutor, poeta, ensaísta, profundo conhecedor da literatura portuguesa, em particular de Fernando Pessoa, sobre cuja obra teceu cinco ensaios, autor do livro, aqui em questão, sobre a sua amada Lisboa, mágica, histórica, velida, livro que merecia ser lido por todos os lisboetas, senão por todos os portugueses. Alguns já o terão feito. Oxalá!
Ángel Crespo veio a Lisboa para a apresentação do seu livro. Fui-lhe apresentado, solicitei-lhe um
autógrafo e ele teve a gentileza de escrever, desculpe-se-me a imodésta revelação: Para Manuel José Trindade Loureiro, co autor de este texto em una magnifica traductión portuguesa, com la admiración y el agradecimento de Ángel Crespo.
de José Pechio
Lisboa, Mítica e Literária, de 1990
de Ángel Crespo
Da mesma colecção, Cidade de Lisboa, de Livros Horizonte, a ambos traduzi e, para deles dar nota, aqui, a ambos os livros reuni.
José Pechio (1785-1835), italiano, nascido em Milão, doutor em Jurisprudência pela Universidade de Pavia, escritor sempre atento à realidade política, social, económica da sua época, um político paladino da liberdade, solidário com os povos que por ela lutavam, que esteve exilado em Lisboa, durante três meses, de 24 de Fevereiro a a 25 de Maio, no ano de 1822, donde escreveu 11 cartas à sua amiga Jenny, Lady O, falando de Lisboa, capital de um país ainda traumatizado pelas invasões francesas, saída de um período revolucionário, uma cidade suja, inculta, atrasada, mas habitada por um povo, acolhedor, simpático, corajoso e bonito.
Ángel Crespo, espanhol, nascido em La Mancha, no ano de 1926, escritor, tradutor, poeta, ensaísta, profundo conhecedor da literatura portuguesa, em particular de Fernando Pessoa, sobre cuja obra teceu cinco ensaios, autor do livro, aqui em questão, sobre a sua amada Lisboa, mágica, histórica, velida, livro que merecia ser lido por todos os lisboetas, senão por todos os portugueses. Alguns já o terão feito. Oxalá!
Ángel Crespo veio a Lisboa para a apresentação do seu livro. Fui-lhe apresentado, solicitei-lhe um
autógrafo e ele teve a gentileza de escrever, desculpe-se-me a imodésta revelação: Para Manuel José Trindade Loureiro, co autor de este texto em una magnifica traductión portuguesa, com la admiración y el agradecimento de Ángel Crespo.
28 de agosto de 2017
TRADUÇÕES (1)
Espionagem e Contra-Espionagem numa Guerra Peninsular (1640-1668), de 1989
Guerra e Pressão Militar nas Terras de Fronteira (1640-1668), de 1990
do professor Fernando Cortés Cortés, doutor em História Moderna pela Universidade da Estremadura.
História de Espanha, 1992
do historiador francês Pierre Vilar
Três livros, três traduções, que, a convite do meu amigo Rogério Moura, efectuei para a sua editora, LIVROS HORIZONTE.
Entendi não ser despropositado juntar aqui os livros de um e do outro, do professor espanhol e do historiador francês. Os três falam da Península Ibérica, os dois primeiros do conflito entre os dois reinos, Castela e Portugal, o terceiro da Espanha, da sua história.
Pierre Vilar terminou de escrever a sua História de Espanha em 1946 pelo que a tradução aqui referida foi feita a partir das edições, francesa e espanhola, corrigidas e actualizadas, de 1986 e 1988. É uma História, concisa, de síntese, numa visão cronológica, desde o passado mais remoto, que se debruça com mais amplitude para os problemas sociais, económicos e políticos dos séculos XIX e XX, com breves referências ao período em que se desenrolou a Guerra Peninsular, que para a historiografia espanhola é a Guerra de Sublevação Portuguesa e para nós é a Guerra de Restauração, que é praticamente ignorada.
Segundo o professor Cortés, ele o explicita logo de início, a finalidade do seu primeiro livro é o conhecimento das actividades de espionagem e de contra espionagem dos exércitos castelhano e português frente a frente em meados do século XVII, durante um conflito que durou 28 anos e cujas consequências para as populações das terras da fronteira hispano-portuguesa, e não só: destruição,
ruína, miséria, despovoamento, são estudadas no segundo livro.
Ao lê-los, por obrigatória necessidade, mas não a contra gosto, regressei à História, à de Portugal e da Espanha, ao eterno confronto dos dois países, vizinhos, fronteiros, rivais, adversários, irmãos, eternamente ressentidos um com o outro.
Guerra e Pressão Militar nas Terras de Fronteira (1640-1668), de 1990
do professor Fernando Cortés Cortés, doutor em História Moderna pela Universidade da Estremadura.
História de Espanha, 1992
do historiador francês Pierre Vilar
Três livros, três traduções, que, a convite do meu amigo Rogério Moura, efectuei para a sua editora, LIVROS HORIZONTE.
Entendi não ser despropositado juntar aqui os livros de um e do outro, do professor espanhol e do historiador francês. Os três falam da Península Ibérica, os dois primeiros do conflito entre os dois reinos, Castela e Portugal, o terceiro da Espanha, da sua história.
Pierre Vilar terminou de escrever a sua História de Espanha em 1946 pelo que a tradução aqui referida foi feita a partir das edições, francesa e espanhola, corrigidas e actualizadas, de 1986 e 1988. É uma História, concisa, de síntese, numa visão cronológica, desde o passado mais remoto, que se debruça com mais amplitude para os problemas sociais, económicos e políticos dos séculos XIX e XX, com breves referências ao período em que se desenrolou a Guerra Peninsular, que para a historiografia espanhola é a Guerra de Sublevação Portuguesa e para nós é a Guerra de Restauração, que é praticamente ignorada.
Segundo o professor Cortés, ele o explicita logo de início, a finalidade do seu primeiro livro é o conhecimento das actividades de espionagem e de contra espionagem dos exércitos castelhano e português frente a frente em meados do século XVII, durante um conflito que durou 28 anos e cujas consequências para as populações das terras da fronteira hispano-portuguesa, e não só: destruição,
ruína, miséria, despovoamento, são estudadas no segundo livro.
Ao lê-los, por obrigatória necessidade, mas não a contra gosto, regressei à História, à de Portugal e da Espanha, ao eterno confronto dos dois países, vizinhos, fronteiros, rivais, adversários, irmãos, eternamente ressentidos um com o outro.
27 de agosto de 2017
ESCRITOS (8)
Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia Soviética
Bio-filmografia publicada no catálogo, CICLO DO CINEMA CLÁSSICO SOVIÉTICO, da Cinemateca Nacional, evento efectuado de parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987
Bio-filmografia publicada no catálogo, CICLO DO CINEMA CLÁSSICO SOVIÉTICO, da Cinemateca Nacional, evento efectuado de parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, em 1987
Aleksandr Dovjenko, cineasta da Ucrânia
Soviética
I
Aleksandr Piotrovitch Dovjenko, nome completo dum
artista ucraniano, pintor, escritor, mas, principalmente, cineasta de grande
prestígio.
Não tendo sido, embora, o
introdutor do cinema na Ucrânia, foi, na realidade, o pai do cinema ucraniano,
que, verdadeiramente, nasceu com Zvenigora,
cresceu com Arsenal e atingiu a
maioridade com A terra.
Dovjenko só cinematizou o que ele próprio escreveu e,
para o cinema, ele só escreveu, sobre a Ucrânia, sobre a terra ucraniana, sobre
o povo ucraniano. Nacionalismo extremo? De modo algum! Apenas honestidade de
quem só fala do que conhece e sabe. Aliás, o discurso de Dovjenko foi sempre de
total identificação com a pátria socialista e soviética e, por isso mesmo, ele
foi também um dos mestres incontestados do cinema nascido da revolução.
Dovjenko nasceu há noventa anos,
no dia 11 de Setembro de 1894, em Sosnitsy, pequena aldeia ucraniana, marginal
do rio Desna, na região de Tchernigov, filho de camponeses pobres e iletrados.
Estudou as primeiras letras no
colégio da sua aldeia natal, fez o secundário e frequentou a escola normal dos
professores primários.
Isento do serviço militar devido
à sua saúde delicada, salvou-se da mobilização de 1914.
De 1914 a 1917 foi mestre
escola em Jitomir e depois em
Kiev. Nesta última cidade foi também, e simultaneamente,
aluno da faculdade de Hi stória Natural e do Instituto de Economia Comercial.
Ainda em Kiev, após a retirada
dos polacos que a tinham ocupado em Maio de 1920, durante a guerra
polaco-soviética que só veio a terminar em 18 de Março de 1921
com
o tratado de Riga, Dovjenko participou na organização da secção de Kiev do
Comissariado do Povo para a educação e foi secretário da direcção, dirigindo o
sector urbano. Ao mesmo tempo tornou-se funcionário da administração local da
educação popular.
Em 1921 foi transferido para
Kharkov, para prestar serviço no Comissariado do Povo dos Negócios Estrangeiros.
Kharkov era na altura a capital da República Socialista Soviética da Ucrânia.,
fundada em 25 de Dezembro de 1917 por decisão do I Congresso Pan-Ucraniano dos
Sovietes, em oposição à república proclamada em Kiev, em Novembro do mesmo ano,
pela Rada Central, organização nacionalista da burguesia reaccionária.
Integrado no corpo diplomático,
foi enviado primeiro para Varsóvia e mais tarde para Berlim, onde trabalhou nos
respectivos consulados durante cerca de dois anos.
Em Berlim estudou pintura com o
professor Heckel e quando, em fins de 1923, regressou a Kharkov, dedicou-se à
pintura e ao desenho, tendo sido caricaturista e ilustrador do jornal Visi.
Finalmente, em 1925, então com 31
anos, desgostoso com as fracas audiências que a pintura e o desenho pareciam
atrair, não sabendo nada de cinema, mas obcecado com as imagens animadas vistas, ocasionalmente, abandonou tudo e todos, inclusivamente, a casa onde vivia, e partiu para Odessa.
A reorganização do cinema na Ucrânia após a revolução,
a guerra civil e a intervenção estrangeira, passou pela criação, em 1922, da
Direcção Pan-ucraniana da Fotografia e do Cinema, VUFKU, que construíra em
Odessa, uma pequena cidade onde funcionava o centro da actividade
cinematográfica. Dovjenko não teve dificuldade em ser admitido no seio dos
trabalhadores de cinema e, em 1926, pela primeira vez, inscreveu o seu nome num
filme, como argumentista. Uma comédia intitulada, Vassia o reformador, que se estreou a 17 de Julho. E ainda nesse
ano, em Ialta, já como realizador, filmou uma segunda comédia, também escrita
por si, chamada, O pequeno fruto do amor.
Dois pequenos filmes que ele não incluiu na sua filmografia, o que já não
aconteceu com o terceiro, A mala do
correio diplomático, onde pela primeira e única vez figura entre os
intérpretes, um filme de aventuras, baseado num acontecimento verídico.
Finalmente, a sua quarta
realização, Zvenigora, que ele
sempre considerou ser, verdadeiramente, a sua primeira obra, e sobre a qual
declarou: Zvenigora permitiu-me julgar da
minha capacidade de fazer filmes… Foi o catálogo de todas as minhas
possibilidades de criador. Estreou-se em Kiev, no dia 13 de Abril de 1928,
e em Moscovo, no dia 8 do mês seguinte, e para a qual a VUFKU, insegura quanto
a um filme que ninguém parecia compreender, convidou Eisenstein e Pudovkine,
cuja autoridade no campo cinematográfico era já incontestável. Ambos assistiram
à projecção e foram apresentados àquele
realizador desconhecido. Eisenstein, mais tarde, escreveu um artigo sobre o
acontecimento, que intitulou, O
nascimento de um génio.
Zvenigora é a história da Ucrânia, desde os tempos mais remotos até
à revolução, concebida numa sucessão de episódios, ora fantásticos ora
realistas, repletos de símbolos, alegorias e de pistas. Filme de difícil
leitura para quem não conhecesse, profundamente, a história do país, mas que a
todos se impunha pelo fascínio da sua poesia, do seu lirismo, pelo seu sopro
épico, e muito também pela sua excentricidade, qualidades que, em maior ou
menor grau, irão estar sempre presentes nas obras de Dovjenko.
Nesse ano de 1928, conheceu e
casou com a actriz Iulia Solntseva que se estreara no cinema em 1924 como
protagonista do filme Aelita, baseado no romance homónimo de Alexei Tolstoi,
realizado por Iakov Protazanov. A íntima e profunda colaboração entre ambos vai
durar toda a vida do artista e prolongar-se-à, mesmo, para além dela, pois será
Iulia Solntseva que já depois da morte de Dovjenko, irá dirigir as filmagens
dos três últimos argumentos que ele escreveu e preparou: O poema do mar (1958), Crónica
dos anos de fogo (1961) e O Desna
encantado (1963).
A sua quinta realização, Arsenal, de 1929, é um poema sobre a
revolução na Ucrânia. O principal personagem do filme é o já conhecido, Timoch,
o jovem camponês de Zvenigora. Timoch,
que se tornou guarda vermelho, esteve na guerra de 1914, e que em Janeiro de
1918 é operário e encabeça a greve e insurreição no estaleiro fabril do
Arsenal, em Kiev. A
história dessa greve e dessa insurreição afogadas em sangue, é o principal
episódio do filme. Os operários são chacinados, mas já nada nem ninguém travará
a revolução. Simbolicamente, Timoch, dando o peito descoberto às forças da
repressão, será baleado repetidamente, mas mantém-se de pé, invulnerável,
invencível, vivo.
Tendo-se estreado em 25 de Fevereiro, em Kiev, e em 26
de Março, em Moscovo, Arsenal
suportou bem as
reticências de alguns críticos e ganhou, sem s favores do público. Com ele Dovjenko confirmou todas as esperanças que fizera nascer com Zvenigora.
Filho
do campo e filho extremoso, Dovjenko não podia ignorar a colectivização das
terras ucranianas e foi ela o tema do seu sexto filme, A terra, realizado em Kiev e nessa mesma cidade estreado, no dia 8
de Abril de 1930.
A terra, que foi o seu último filme mudo, é geralmente considerado a sua melhor obra e uma indiscutível
obra-prima, muito embora, também ele, dentro e fora do país, não escapasse às
críticas e incompreensões dos que sobrepunham a retórica política e ideológica
à arte, e Dovjenko tenha sido acusado de idealismo e até de terrorismo.
O jovem camponês Timoch de Zvenigora, que depois de ter sido soldado virara operário em Arsenal, chama-se em A terra, Vassili, trabalha no campo e é
tractorista. O mesmo actor, Semione Svachenko, desempenha essas personagens nos
três filmes e, certamente, não por acaso. Camponês, soldado, operário, tantos e
um só: o jovem revolucionário ucraniano que luta, até à morte, pela vida e
felicidade do seu povo e da sua pátria, no campo de batalha, na fábrica, no kolkhos.
É na organização de um kolkhos, na sua aldeia, que Vassili
trabalha afincadamente até à sua morte, assassinado a tiro por um kulak, e é a emoção e indignação que a
tragédia provoca, que irá despertar os aldeões e empurrá-los, definitivamente,
para a vida colectiva.
A morte é um tema muito constante
e de muito peso nos filmes de Dovjenko. Mas ela, na sua inevitabilidade, nunca
é apresentada como um fim, mas, pelo contrário, anuncia sempre a vinda de algo
de novo e de melhor.
Num artigo necrológico sobre
Dovjenko, da autoria de Ivor Montagu, publicado na revista Sight and Sound, no verão de 1957, diz o crítico com muita
propriedade: Os mortos cobrem os filmes de Dovjenko. Nunca outro artista em qualquer
arte, soube tão bem dilacerar os nossos corações. Mas, em Dovjenko, nenhuma
morte é fútil.
Com, A terra, encerra-se a primeira fase da
actividade cinematográfica de Aleksandr Dovjenko.
II
Em 1931, em viajem pela Europa,
acompanhado pela mulher, Dovjenko, com o seu último filme na bagagem,
apresentou A terra, em Paris, Londres, Berlim, Praga.
O
sucesso foi incontestável, com a fita a ser unanimemente aplaudida, embora a
nível do grande público a aceitação tenha sido claramente limitada pelo advento
do sonoro.
Já após o falecimento de
Dovjenko, em 1958, o filme teve a sua grande consagração ao ser considerado
como um dos doze melhores de todos os tempos. À margem do Festival
Internacional de Cinema que, nesse ano de 1958, decorreu em Bruxelas, durante a
Exposição Universal, levada a efeito na capital belga, um júri de 117
historiadores e críticos ligados ao departamento internacional de pesquisa
histórica cinematográfica,
foi convidado a seleccionar e classificar os trinta melhores filmes de todos os
tempos. O apuramento dos 117 boletins deu origem a uma lista de 609 títulos, da
qual o comité organizador retirou e publicou os doze mais votados. Três eram
soviéticos: O couraçado Potiomkine,
de Serguei Eisenstein, o primeiro, A mãe,
de Vsevolod Pudovkine, o oitavo, A Terra,
o décimo.
Durante os quatro meses e meio
que esteve no estrangeiro, Dovjenko teve ocasião de expor e discutir os
princípios que norteavam o seu cinema. O resumo que deles deu, em Paris, à Revue du Cinema, transcreve-os Jay Leyda no seu Kino-Histoire du Cinema Russe e Soviétique: "Não é a história quem interessa. Considero-a apenas como
o meio mais eficaz de exprimir e de pintar formas sociais importantes. É por isso que trabalho com documentos típicos, aplicando o método de síntese. Os meus heróis, e o seu comportamento são representativos da classe
o meio mais eficaz de exprimir e de pintar formas sociais importantes. É por isso que trabalho com documentos típicos, aplicando o método de síntese. Os meus heróis, e o seu comportamento são representativos da classe
a que pertencem. Por vezes a
documentação dos meus filmes está concentrada em alto grau e ao mesmo tempo,
faço--a passar pelo prisma da emoção que lhe dá vida e, por vezes, eloquência.
Não posso ficar indiferente perante esses documentos. É necessário amar, ou
odiar, muito e com força; sem isso uma obra fica seca e dogmática.
Regressado à Ucrânia, Dovjenko
pensava, para o seu primeiro filme sonoro, nma história passada no Ártico, nas
regiões polares, que, no entanto, não teve aceitação. Os estúdios de Kiev
propuseram-lhe, antes, um filme sobre a industrialização o que o levou a
escrever um argumento cujo pano de fundo era a construção da barragem do
Dniepr. O filme chamou-se, Ivane, e
foi estreado em Moscovo, no dia 6 de Novembro de 1932, no âmbito das
comemorações do 15º aniversário da Revolução de Outubro.
O fio do cenário é extremamente simples, o jovem
Ivane, camponês vigoroso, bem parecido e analfabeto, sai da sua aldeia e é
recrutado para ir trabalhar na construção de um barragem onde vai ser instalada
uma central hidro-eléctrica. Transformando-se, gradualmente, num operário,
Ivane vai tomando consciência da sua ignorância e resolve dedicar-se ao estudo,
para assim vir a ser, verdadeiramente, senhor do seu destino. Ivane é assim o
símbolo de todo o povo, o povo soviético, a lutar e trabalhar pelo seu futuro.
Mas a narrativa fílmica saiu complexa e difícil de seguir, muito ao estilo
habitual de Dovjenko: despreocupação no desenvolvimento do enredo básico, com
muitos cortes, interrupções e desvios, com episódios que, aparentemente, mas só
aparentemente, nada têm com a acção principal, e grande relevo dado ao
movimento das grandes ideias e à dinâmica dos processos sociais, através de
cenas exteriores de grande amplitude e beleza.
O filme foi considerado um
falhanço e criticado com alguma incompreensão, o que levou Dovjenko a virar as
costas ao mau ambiente que o rodeava em Kiev, e a abalar para Moscovo, trocando
a Ukraniafilm pela Mosfilm.
Aos estúdios moscovitas Dovjenko
começou por propor a realização de um filme sobre o Tsar, uma tragicomédia sobre
a agonia do tsarismo russo, a degeneração da família Romanov e as intrigas da
corte imperial, mas a proposta não teve acolhimento. A alternativa que lhe foi
oferecida, uma fita sobre a 1ª Grande Guerra, foi por sua vez recusada. Mais
tarde nasceu a ideia de um filme sobre a Sibéria, baseado num cenário escrito
por Aleksandr Fadeiev, que Dovjenko comentou com Vichnevski com quem,
entretanto, estabelecera traços de amizade. Avançou com a ideia, mas para a
fazer vingar viu-se na necessidade de recorrer ao próprio Estaline, a quem
escreveu, que o chamou ao Kremlin, ouviu-lhe a exposição e deu o seu acordo ao
projecto siberiano.
Partiu para o Extremo Oriente, em
Setembro de 1933, e por lá andou durante cerca de quatro meses. O material
recolhido levou-o a repensar todo o cenário e a desistir de Fadeiev. Regressado
a Moscovo escreveu em dois meses e meio o argumento de, Aerograd. O oriente, belo, exótico e rico, era também um dos pontos
mais vulneráveis da União Soviética. A memória da guerra com o Japão ainda
estava muito viva, Vladivostok só fora libertada em 1922, e os japoneses
ocupavam agora a Manchúria, a ser transformada em base militar de
agressão.
Dovjenko pensava e, expressamente, o declarou no
encontro nacional dos cineastas, em 1935, que haveria guerra, dentro de poucos
anos, e que era necessário preparar as armas para a batalha. Aerograd, estava na linha dos filme chamados de defesa. Ele tinha de retratar não o oriente de ontem ou de hoje, mas o de amanhã. E assim foi concebido e assim nasceu, repleto de sonhos, avisos e pressentimentos. A cidade utopia, a cidade aérea do futuro a construir no deserto siberiano.
A estreia verificou-se a 6 de Novembro de 1935.
Polémico como vinham sendo todos os seus filmes, provocou o tipo de reacções
contraditórias que, de nenhum modo, desagradavam a Dovjenko. Ele, aliás,
sentia-se agora muito mais seguro com o seu prestígio bem firmado, após ter
sido agraciado com a Ordem de Lenine, em Fevereiro desse ano, em sessão do
Soviete Supremo dedicada aos trabalhadores de cinema. Nesse dia ficou
determinado qual seria o seu futuro filme, quando Estaline mostrou interesse
por um Tchapaiev ucraniano e lhe
sugeriu o nome de Chtchors.
A recolha de material começou
ainda durante as filmagens de Aerogard.
Ele começou por desejar que Vichnevski, escritor de temas militares, escrevesse
o cenário, para mais, tendo tomado parte na guerra civil da Ucrânia. Mas, como
sempre, acabou por querer ser ele próprio a fazê-lo. Regressou a Kiev, aos
estúdios Ukraniafilm, mas agora com uma autoridade que antes não tinha, como
director artístico, impondo a sua personalidade e as suas convicções, atencioso
para quem tinha talento, intolerante para quem o não tinha ou para quem o
cinema era apenas um modo de ganhar dinheiro.
Chtchors foi um parto deveras difícil. Toda a gente parecia saber
melhor do que ninguém o que o filme devia e não devia ser, inclusive o próprio
Estaline, inicialmente extremamente aberto, mais tarde perigosamente
desconfiado. Mas Dovjenko, que fez, desfez e refez o cenário que levou onze
meses a escrever, e que prolongou as filmagens por vinte meses, resistiu às
pressões, até ao medo de ter sido acusado de conspirador nacionalista. O seu
Nikolai Chtchors, herói ucraniano, chefe dos guerrilheiros que lutaram contra
os ocupantes alemães e os traidores da Petliura, não foi deturpado ou
desumanizado, muito embora se lhe possa apontar o ser, por vezes, demasiado
positivo.
Chtchors é um filme extremamente bem construído, coerente, sentido,
sem devaneios ou inúteis desvios, por vezes romântico, por vezes lírico, quase
sempre épico, com uma portentosa sequência inicial, absolutamente antológica do
cinema dovjenkiano. Uma obra prima do realismo socialista, um clássico do
cinema soviético.
Estreou-se
no dia 1 de Abril de 1939, em Kiev, e no dia 1 de Maio desse mesmo ano, em Moscovo. Foi a última
realização de Dovjenko antes do desencadear da guerra.
III
Na madrugada do dia 1 de Setembro
de 1939, às 4h.45m, as tropas da Alemanha Nazi invadiram a Polónia. Começava, assim,
a II Grande Guerra Mundial, que só terminaria seis intermináveis e terríveis
anos mais tarde.
Dirigida por um governo
reaccionário, encostado a um exército afastado do povo, a Polónia estava
praticamente vencida em meados desse mesmo mês, apesar do indesmentível,
heroísmo, coragem e capacidade de resistência bem demonstrada por algumas
unidades militares e pela população civil.
Perante o avanço impetuoso e
ameaçador dos invasores alemães, o exército soviético, em defesa das fronteiras
do seu próprio país e salvaguardadas regiões
e populações ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia que, após a guerra
civil que sucedeu à revolução de Outubro, tinham ficado sob o domínio da
burguesia capitalista e latifundiária polaca, invadiu, por sua vez, a Polónia e
ocupou esses territórios. Hitler, apanhado de surpresa e ainda inseguro da sua
força, aceitou, na altura, o inesperado revés.
No mês seguinte, em Outubro de
1939, na Ucrânia Ocidental e na Bielorrússia Ocidental, realizaram-se eleições para as assembleias populares, as quais instauraram o poder dos sovietes e pediram a sua integração na URSS, passando a fazer parte dos povos soviéticos.
A evocação de tais acontecimentos
justifica-se pelo facto de Dovkenko, que os seguiu atentamente, se ter
deslocado oficialmente à Ucrânia libertada e sobre eles ter realizado um
documentário, a partir de um guião da sua autoria, que incidia principalmente
na reunificação ucraniana. Ao filme que ele próprio montou, chamou-lhe Libertação.
Em 1940, Dovjenko anunciara no Izvestia de 1 de Junho,
a sua intenção de realizar um filme sobre Tarass Bulba. A redacção do cenário,
interrompida com a montagem de Libertação,
terminou-a ele três semanas antes do traiçoeiro ataque dos alemães e o filme
nunca chegou a ser rodado.
O ataque das forças nazis
verificou-se na madrugada do dia 22 de Junho de 1941. Na manhã desse dia,
estupefactos, os soviéticos ouviram Molotov anunciar na rádio, a perfídia sem precedentes na história das
nações civilizadas. O geral atordoamento em que ficou o país, não
impeditivo embora da coragem e estoicismo com que foi resistindo ao inimigo, só
verdadeiramente abrandou quando alguns dias depois, a 3 de Julho, Estaline,
finalmente, se dirigiu aos seus concidadãos: Um grave perigo pesa sobre a nossa pátria… O exército e a marinha assim
como todos os cidadãos devem defender cada palmo do território soviético, lutar
até à última gota de sangue pelas
nossas cidades e aldeias…
Seguindo o exemplo de todas as camadas sociais e
profissionais da população, os cineastas, na frente e na retaguarda, com maior
ou menor continuidade, com mais ou menos dificuldades e perigos, cerraram
fileiras, mobilizaram recursos, e ergueram uma cinematografia de guerra de
grande eficácia, altamente vigorosa, fortemente mobilizadora e moralizante, não
só no âmbito das actualidades e documentários, como nos filmes de ficção.
Devido à invasão os estúdios
cinematográficos das zonas europeias foram evacuados para as repúblicas
asiáticas. A Mosfilm e a Lenfilm instalaram-se em Alma-Ata e os estúdios
ucranianos em Tachkent e Achkabad. Dovjenko não acompanhou a evacuação do
estúdio de que era director artístico, recusando essa espécie de exílio, embora
não ficasse em Kiev onde o seu apartamento foi saqueado e dinamitado. Conseguiu
ir para a frente como correspondente de guerra, tendo-lhe sido dada a patente
de coronel. Os seus artigos invadiram a pouco e pouco todos os jornais do país,
relatando recuo das forças soviéticas, assim como, mais tarde, o volta-face, a
desforra, a vitória.
Os anos de guerra foram, para
ele, de grande produção literária. Escreveu artigos, contos, novelas, peças de
teatro, cenários de filmes. São desse período, para além de muitos outros
textos: Alto, espera morte (1941), Ucrânia em chamas (1942), A noite antes da batalha (1942), A mãe Stoiane (1943), A vitória (1943), Mitchurine (1944) e Crónica
dos anos de fogo (1945), sendo que estes dois últimos iriam dar origem a
dois filmes.
Termino Mitchurine. Quanto mais escrevo, mais penso sobre o que escrevi
e mais gosto deste homem… identifico-me com ele, que me seja desculpada uma tal
comparação. São palavras de Dovjenko, lançadas, em 22 de Novembro de 1944,
no seu Diário, onde no ano seguinte, a 17 de Julho, escrevia: Li a "Crónica dos anos de fogo" no
departamento dos cenários… deixou uma excelente impressão.
O único estúdio de cinema que frequentou durante a
guerra foi o Estúdio Central de Actualidades. Dele saíram os dois documentários
de guerra que figuram na sua filmografia:
A luta pela
nossa Ucrânia Soviética
(1943) e Vitória na Ucrânia
e
expulsão dos alemães das fronteiras da
Ucrânia Soviética (1945). São duas
obras de responsabilidade colectiva, mas têm a sua marca e são o seu testemunho
sobre a guerra.
Ele
teve, aliás, ocasião, na altura, de falar sobre a sua experiência de
documentarista: Precisávamos de planos
que mostrassem a lama, o género de planos que os realizadores evitam, não sem
discutir com os operadores. Só por si
essas imagens nada significavam, mas através da sua ligação enchiam-se
de significado na medida em que queríamos mostrar os obstáculos com que a nossa
ofensiva de 1944 deparou na margem esquerda ucraniana. Agora são acompanhadas
de um comentário que recorda como esses espaços infinitos foram lavados com o
sangue do nosso povo como os campos pelas chuvas primaveris como eles viram
decidir-se o destino da humanidade, pois foi aqui que a arte militar alemã foi
vencida, foi aqui que a libertação da Europa foi assegurada. Assim estes vastos
lençóis de lama surgem-nos cheios de valor. Não temos nenhuma necessidade de
ênfase para exprimir uma emoção profunda, o patético pode ser dado não por
gritarias mas por documentos reunidos com arte e com sinceridade.
IV
Terminada a guerra, Dovjenko instalou-se em Moscovo. Seu pai
morrera brutalizado pelos alemães,
apesar da sua idade avançada, a mãe trouxe-a de Kiev onde a encontrara vivendo
em condições infra-humanas. Restavam-lhe cerca de 11 anos de vida.
Como foi possível que durante
esse último período da sua existência só tivesse realizado um filme, Mitchurine?
Mitchurine foi, primeiro, uma peça de teatro intitula, A vida entre flores, cuja estreia se
verificou em 1946. Do caderno de apontamentos deixado por Dovjenko, pode
ler-se: 2-4-46. No dia 29 de Março li
"A vida entre flores" na União de Escritores… Três horas de leitura.
As pessoas escutaram como hipnotizadas. Somente no fim reparei como todas estavam
excitadas e comovidas…. Aplaudiram-me largamente… Senti-me no entanto muito
triste. Havia em tudo aquilo algo que se assemelhava a uma demonstração. As
pessoas que estavam à minha frente… regozijavam-se porque eu não me tornara um
impotente mental, um lacaio, porque eu não amaldiçoara o universo.
Mitchurine, só depois
foi um guião e, mais tarde, um filme, o seu primeiro e único filme a cores, e o
seu último filme. Estreou-se no dia 1 de Janeiro de 1949, após uma rodagem
iniciada em 1947 que deparou com imensos escolhos. A primeira versão,
fundamentalmente lírica, recebeu críticas severas e deu origem a uma segunda
versão, mais convencional, mais oficial, que, de certo modo, Dovjenko
desprezou.
Mitchurine é um filme biográfico, que foca a figura do agro-biólogo
russo, Ivane Vladimirovitch Mitchurine (1855-1935) que, após a revolução de
Outubro e graças ao que lhe foi concedido pelo governo, pôde dedicar toda a sua
vida à investigação. As suas teorias foram, mais tarde retomadas, desenvolvidas
e divulgadas por outro cientista, Trofime Demissovitch Lissenko, e foi a
polémica que estalou à volta de Lissenko e dos seus trabalhos, dentro e fora da
União Soviética, de cunho científico, mas também ideológico e político, que
constituiu o factor altamente perturbador que tanto afectou a realização do
filme, que de um momento para o outro se transformou no centro de preocupações
e interesses que pouco ou nada tinham a ver com a arte cinematográfica.
Mitchurine saiu, pois, um filme desequilibrado, com sequências cuja
beleza e pujança honram o seu autor e cenas intervalares que, por retóricas e
vulgares,
denunciam
a sua ausência e desinteresse. E se o filme saiu como saiu, Dovjenko, por seu
lado, não saiu com uma imagem mais desanuviada do que aquela que já tinha.
Leia-se, por exemplo, o que escreveu no seu caderno de apontamentos: 10-8-53. A perversidade de Béria, indiscutivelmente
um fácies sinistro e repulsivo do nosso tempo. Recordo-me do seu rosto
diabólico quando me chamou para um severo, terrível julgamento, a propósito de
algumas frases infelizes, inexactas, que tinham sido insinuadas, segundo o
próprio Estaline, no meu cenário "Ucrânia em chamas".
Não admira, pois, que após Mitchurine, tenham sido recusados todos os seus projectos
cinematográficos. Inclusive, um filme cuja realização, segundo parece, chegou a
iniciar, foi interrompido e nunca chegou a ser visto: Adeus, América. Dedicou-se, então, ao ensino e à escrita.
Entre 1950 e 1954, escreveu, pelo
menos, três cenários: A abertura do
Antártico, baseado no diário de Thadeus Bellinghausen (1819); Nos confins do cosmos, relato de uma
viagem interplanetária; O Desna
encantado, uma autobiografia da sua infância; e uma peça de teatro, Os descendentes dos Cossacos-Zaparogues.
E foi mantendo em dia o seu caderno de apontamentos: Faço hoje sessenta anos… se sinto amargura? Não. O céu está puro e o ar
transparente. Bendigo a vida grande e bela que me deu tais presentes. Hoje amo
todos os homens. Amo o meu governo, amo o meu partido e trago comigo o seu
significado, os seus fins, o seu dever perante o mundo. Com um amor fervente
amo o povo do meu país. Muitas tempestades se apagaram do meu coração, só uma
ficou para sempre, a paixão ética. E por isso bendigo o meu destino e a minha
época.
Finalmente, entre 1954 e 1956, iniciou a minuciosa
preparação de um novo filme: O poema do
mar. Naquela que foi a sua última entrevista, dada a Georges Sadoul,
revelou que o filme era o último de uma trilogia, a história da construção de
uma barragem cujas águas submergem uma aldeia. Começava, pois, pelo fim. A
primeira parte decorreria em 1930, durante a colectivização. E a segunda
trataria da resistência dos habitantes da aldeia face aos alemães durante a
Grande Guerra.
Na véspera do dia marcado para
dar início à rodagem, o coração de Dovjenko deixou de bater. Era o dia 26 de
Novembro de 1956.
Não foi inesperada a crise
cardíaca que o vitimou, pois o seu coração há muito que vinha falhando, mas a
sua morte nem por isso deixou de ser amarga e dolorosamente sentida e chorada
por todos os que conheciam e amavam o artista e, mais amplamente por todos os
que conheciam e amavam a sua obra.
Foi um crime lesa cinema o
destino não lhe ter permitido a realização de O poema do mar. Muito embora a sua mulher, Iulia Solntseva, ao
realizá-lo, tenha conseguido um belíssimo trabalho, de uma integral fidelidade
à letra e ao espírito do autor, O poema
do mar, de Dovjenko, ficou
perdido para sempre.
Iulia Solntseva realizou ainda
duas outros obras de Dovjenko: Crónicas
dos anos de fogo (1961) e Desna
encantado (1963), numa linha de pensamento e acção sempre
intransigentemente fiel à escola de Dovjenko. Foi uma das mais importantes
homenagens à memória do artista, a juntar ao prémio Lenine, atribuído a título
póstumo em 1959, e a determinação de dar aos estúdios de Kiev o nome de
Aleksandr Dovjenko.
Sonhei com a realização de uma
retrospectiva integral da obra cinematográfica de Dovjenko. Foi apenas um
sonho!
26 de agosto de 2017
25 de agosto de 2017
BIBLIOTECA (7): a Marquise
Ela é o fim da linha, a última estação, término desta viagem descrita ao sabor da pena, sem preocupações de estilo ou de erudição. Apenas o prazer de falar do que se gosta, neste caso, de uma biblioteca e dos livros que a habitam.
Conhecia-a era ela ainda uma varanda aberta ao sol, ao vento e à chuva, é agora uma marquise envidraçada, acolhedora, salvo em algumas noites mais geladas de inverno ou nos pinos de verão. É nela que se abriga a Literatura Portuguesa dos géneros policial e fantástico. Só a falta de espaço na Sala, e o elevado número de exemplares que assim podem ser classificados, não qualquer preconceito, levaram à opção, naturalmente discutível, de os separar dos que lá estão, mas divisão haveria sempre, qualquer que ela fosse. Aliás, basta recordar alguns dos autores e algumas das respectivas obras, para não haver quaisquer dúvidas sobre isso:
Agustina Bessa-Luís (Aquário e Sagitário), Clara Pinto Correia (Adeus, princesa), José Rodrigues Miguéis (Uma aventura inquietante), Fernando Namora (Rio Triste), Fernando Pessoa (Histórias de um racionador e Quaresma decifrador), José Cardoso Pires (A balada da praia dos cães),
Jorge Reis (Matai-vos uns aos outros), Hugo Santos (A morte do professor).
Mário Braga (O reino circular), Álvaro do Carvalhal (Os canibais), Natália Correia (Onde está o menino Jesus), Mário-Henrique Leiria (Casos de direito galáctico e O mundo inquietante de Josela), António José da Silva,o Judeu (O diabinho da mão furada)
Conhecia-a era ela ainda uma varanda aberta ao sol, ao vento e à chuva, é agora uma marquise envidraçada, acolhedora, salvo em algumas noites mais geladas de inverno ou nos pinos de verão. É nela que se abriga a Literatura Portuguesa dos géneros policial e fantástico. Só a falta de espaço na Sala, e o elevado número de exemplares que assim podem ser classificados, não qualquer preconceito, levaram à opção, naturalmente discutível, de os separar dos que lá estão, mas divisão haveria sempre, qualquer que ela fosse. Aliás, basta recordar alguns dos autores e algumas das respectivas obras, para não haver quaisquer dúvidas sobre isso:
Agustina Bessa-Luís (Aquário e Sagitário), Clara Pinto Correia (Adeus, princesa), José Rodrigues Miguéis (Uma aventura inquietante), Fernando Namora (Rio Triste), Fernando Pessoa (Histórias de um racionador e Quaresma decifrador), José Cardoso Pires (A balada da praia dos cães),
Jorge Reis (Matai-vos uns aos outros), Hugo Santos (A morte do professor).
Mário Braga (O reino circular), Álvaro do Carvalhal (Os canibais), Natália Correia (Onde está o menino Jesus), Mário-Henrique Leiria (Casos de direito galáctico e O mundo inquietante de Josela), António José da Silva,o Judeu (O diabinho da mão furada)
BIBLIOTECA (6): o Escritório
Conheci-o com muitos outros nomes, mas este é o que lhe fica melhor, do que eu mais gosto. Será o último que lhe conhecerei, profetizo. A minha Teresa, a filha, teve a ideia de um dístico para pendurar na porta do dito: patries scriptorium.
Ele, o escritório do pai, comporta, além das secretárias, das cadeiras e do computador, um recheio literário, de ficção, que abarca os seguintes países: África do Sul, Angola, Argélia, Cabo Verde, Camarões, Moçambique; Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Cuba, EUA, México, Peru; China, Índia, Líbano, Palestina, Quirguízia, Rússia, Tibete, Turquia, Vietname; Austrália, e também, á parte, livros de arte, cultura, filosofia e psicologia, portugueses e estrangeiros, e uma enciclopédia.
Alguns nomes para compor o ramalhete:
Luandino Vieira (Luuanda), Mia Couto (Mar me quer), Jorge Luís Borges (Fições), Jorge Amado (Gabriela, cravo e canela), Gabriel Garcia Marques (Cem anos de solidão), Leonardo Padura (Hereges), Hemingway (O velho e o mar), Mário Vargas Llosa (A festa do chibo), Arundhati Roy (O deus das pequenas coisas), Tchinghiz Aimatov (Djamília), Lev Tolstoi (Guerra e Paz), etc,
e também:
Eduardo Loureço (O esplendor do caos), Magalhães-Vilhena (O problema de Sócrates), António
Sérgio (Ensaios); Kant (Crítica da razão pura), Karl Marx (O Capital), Platão (A República), etc.
Ele, o escritório do pai, comporta, além das secretárias, das cadeiras e do computador, um recheio literário, de ficção, que abarca os seguintes países: África do Sul, Angola, Argélia, Cabo Verde, Camarões, Moçambique; Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Cuba, EUA, México, Peru; China, Índia, Líbano, Palestina, Quirguízia, Rússia, Tibete, Turquia, Vietname; Austrália, e também, á parte, livros de arte, cultura, filosofia e psicologia, portugueses e estrangeiros, e uma enciclopédia.
Alguns nomes para compor o ramalhete:
Luandino Vieira (Luuanda), Mia Couto (Mar me quer), Jorge Luís Borges (Fições), Jorge Amado (Gabriela, cravo e canela), Gabriel Garcia Marques (Cem anos de solidão), Leonardo Padura (Hereges), Hemingway (O velho e o mar), Mário Vargas Llosa (A festa do chibo), Arundhati Roy (O deus das pequenas coisas), Tchinghiz Aimatov (Djamília), Lev Tolstoi (Guerra e Paz), etc,
e também:
Eduardo Loureço (O esplendor do caos), Magalhães-Vilhena (O problema de Sócrates), António
Sérgio (Ensaios); Kant (Crítica da razão pura), Karl Marx (O Capital), Platão (A República), etc.
23 de agosto de 2017
BIBLIOTECA (5): a Despensa
É a Despensa, que não se dispensa por tudo aquilo que é próprio ter, e tem, e por tudo aquilo que, não sendo costume ter, também tem. Ou seja, ela tem tudo, o que uma despensa não dispensa, e mais alguma coisa. Deixando para trás, o tudo, indispensável, eis o, mais alguma coisa, que nos ocupa:
- Livros de Gastronomia:
- Uma Colecção de Conchas Marinhas (na minha opinião, excelente) a justificar os livros que a apoiam:
- Livros de Gastronomia:
Avillez,
José: As melhores receitas do ano (1915)
Avillez
José: Receitas em grande
Carmo,
Isabel: Saber emagrecer
Courtine:
As receitas de Simenon e Maigret
Goucha,
Manuel Luís: À mesa
Montalbán,
Manuel Vasquez: Las receitas de Carvalho
Rosa-Limpo,
Bertha: O livro de Pantagruel
Silva,
Alexandre: 14 pratos regionais
Viana,
António Manuel Couto e Ceferino Carrera: Comeres
de Lisboa (roteiro gastronómico)
- Uma Colecção de Conchas Marinhas (na minha opinião, excelente) a justificar os livros que a apoiam:
Dance, S. Peter: Conchas
Hayward, P., T. Nelson-Smith et C. Shields: Guide
des bords de mer
Lawrence,
Eleanor e Sue Harniess: Conchas marinhas
Lindner,
Gert: Guide des coquillages marins
Macedo,
Maria C. Consolado, M. I. C. Macedo e J. Pedro Borges: Conchas Marinhas de Portugal
Silva,
José António e Gil Montalverne: Iniciação
à colecção de conchas
Wye, Keneth R.: The encyclopedia of shells
- Outros livros:
Teles, Américo: Guia prático de preparação de algas marinhas
Teles, Américo: Guia prático de preparação de algas marinhas
Portugal Natural
ESCRITOS (5) e (6)
A Literatura Policial Moderna
e
Para a História da Literatura Policial Portuguesa que um dia alguém há-de escrever
Dois dossiês com textos sobre temas do mesmo universo literário, o do género policial. Assim sendo, bem ou mal, decidi juntá-los nesta peregrinação aos meus escritos. Versões sobre a literatura policia, em geral, não faltarão, mas quis dar a minha própria, além de explicar o porquê de lhe ter chamado moderna. A panorâmica sobre a literatura policial portuguesa, é modesto um contributo para quem lhe quiser fazer a história.
Cada um dos dossiês tem o seu texto de apresentação pelo que, para não sobrecarregar a exposição, preparei uma súmula dos dois, para aqui a trascrever.
INTRODUÇÃO
Foi
publicado, em folhetins, no jornal, Diário
de Notícias, de Lisboa, entre 24 de Julho e 27 de Setembro de 1870,
surgindo, assim, vinte e nove anos depois de, nos Estados Unidos, precisamente
em Abril de 1841, ter sido publicado aquele que marcou o início da literatura
policial moderna, o já referido, Os
crimes da rua Morgue.
e
Para a História da Literatura Policial Portuguesa que um dia alguém há-de escrever
Dois dossiês com textos sobre temas do mesmo universo literário, o do género policial. Assim sendo, bem ou mal, decidi juntá-los nesta peregrinação aos meus escritos. Versões sobre a literatura policia, em geral, não faltarão, mas quis dar a minha própria, além de explicar o porquê de lhe ter chamado moderna. A panorâmica sobre a literatura policial portuguesa, é modesto um contributo para quem lhe quiser fazer a história.
Cada um dos dossiês tem o seu texto de apresentação pelo que, para não sobrecarregar a exposição, preparei uma súmula dos dois, para aqui a trascrever.
INTRODUÇÃO
O género
literário a que se convencionou chamar policial, assenta em histórias que
obedecem, ou devem obedecer, a três exigências: ter crime, ter mistério, ter
investigação. O crime pode ser de sangue ou não, um homicídio, um roubo, um
rapto, uma chantagem, mas deverá ser sempre, incondicionalmente, enigmático,
ter enigma, ter mistério, ser misterioso
e, assim, obrigar, sempre, a uma investigação exigente, para ser desvendado –
quem o cometeu, como, quando, onde e porquê – a cargo da polícia oficial ou, na
eventual ausência inicial desta, de um detective profissional privado, de um
investigador amador, ou, apenas, de um diletante. A satisfação destas
exigências que, independentemente do rigor e da imaginação e diversidade com
que são tratadas, caracterizam o género, depende, naturalmente, do talento, da
vontade e das intenções do escritor.
A tais
histórias, ingleses e americanos chamam-lhes detective stories, mas conforme os temas abordados e o
desenvolvimento que lhes é dado, também as designam por thrillers ou crime stories.
Os franceses, mais despreocupados, designam-nas, simplesmente, policiers, embora tenham tido também a ideia
peregrina de lhes chamar polares.
Nós, portugueses, solidariamente latinos, optámos também, sensatamente, por
chamar-lhes, policiais ou policiárias
Segundo consenso, mais ou menos
alargado, a literatura policial nasceu em meados do século XIX, mais
precisamente em 1841, com a publicação de um pequeno romance, The murders in the rue Morgue (1), protagonizado
por um investigador diletante, o francês
Auguste Dupin, imaginado pelo escritor norte-americano, Edgar Allan Pöe, embora
o seu desenvolvimento só se tenha verificado, vinte anos mais tarde, graças ao
escritor francês, Émile Gaboriau, criador dos inspectores Tabaret e Lecoq, da
Sûreté, e a sua verdadeira consolidação, maturidade e geral aceitação, a partir
dos finais dos anos 80, ainda do século XIX, se deva ao britânico, Conan Doyle,
genial criador do mítico detective privado Sherlock Holmes e do seu amigo e
biógrafo dr. Watson.
Não esquecer,
no entanto, que já antes do nascimento desta literatura policial, subordinada à
investigação dedutiva do mistério e do crime, existiam, e continuaram a
existir, histórias sobre casos de perfil policial, embora de contornos,
características, e objectivos diferentes: as grandes tragédias, os dramas de “faca e alguidar”, os intrincados
confrontos entre a maldade e a moralidade, o macabro e o terror, com o
sobrenatural à mistura, pelo que, com inteira propriedade, adjectivamos de moderna, a literatura policial.
De tais histórias que em maior ou menor grau, influenciaram a literatura policial de que foram predecessoras, o justo destaque vai para o livro, Mémoires de Vidoq (1828), de Eugéne-François Vidoq (1775-1857), dado o impacto das suas revelações sobre o mundo do crime.
De tais histórias que em maior ou menor grau, influenciaram a literatura policial de que foram predecessoras, o justo destaque vai para o livro, Mémoires de Vidoq (1828), de Eugéne-François Vidoq (1775-1857), dado o impacto das suas revelações sobre o mundo do crime.
Vidoq, indivíduo de maus princípios, com uma juventude dedicada ao banditismo, em 1809, aos 34 anos, resolveu mudar de campo, não de carácter, ofereceu-se para informador da polícia, e tão profícua foi a sua acção que, dois anos depois, foi nomeado chefe da Sûreté que dirigiu até 1827, e depois de 1931 a 1843, e em 1845, já reformado, abriu a primeira agência privada de detectives do mundo.
Tendo-se relacionado com vários escritores, o seu livro de memórias, e ele próprio, a sua personalidade e os seus conhecimentos, inspiraram, entre outros, Alexandre Dumas, Eugène Sue, Victor Hugo e,
principalmente, Honorè de Balzac com quem, em 1822, travou relações de amizade.
Tornou-se, assim, o Vautrin de Le Pére Goriot, mas foi ele também, mais
tarde, o modelo do Jackal de Les Mohicanos
de Paris, do Rocambole, simultaneamente, do foragido Jean Valjean e do
polícia Javert, de Les Misérables, e
ainda, porque não, do Arsène Lupin.
E para além de
Vidocq e das suas memórias, indispensável é registar, também, obras e autores tão significativos como: The Castle of Otranto (1764), de Horace
Walpole (1717-1797); The Mysteries of
Udolpho (1794), de Ann Radcliffe (1764-1823); Caleb Williams (1794), de William Godwin (1756-1836); Ambrósio, or the Monk (1795), de Matthew
Gregory Lewis (1775-1818); Ormond or The
Secret Witness (1799), de Charles Brockden Brown (1771-1810); Der Kaliber (1829), de Adolf Mullner
(1774-1829); Pelham ou Les Aventures d'un
Gentleman (1828) e Eugen Aram (1832),
de Edward Bulwer Litton (1803-1873); Ferragus
(1833), Le Père Goriot (1835) e Une Ténèbreuse Affaire (1841), de Honoré
de Balzac (1799-1850; Mémoires du Diable (1837),
de Frédéric Soulié; The Avenger (1838),
de Thomas de Quincey; Jack Sheppard
(1839), de William Harrison Ainsworth.
Em Portugal, a literatura
policial, sem tradição, existiu, embora sem grande destaque ou qualidade. Os
seus antecedentes foram as más traduções, quase sempre do francês, dos contos e
romances góticos, e depois, influenciados por tais textos, o teatro de horror e
a novelística negra. As primeiras obras, com características que já faziam
adivinhar a futura ficção policial, detectam-se à volta do início da segunda
metade do século XIX. Exemplos disso são: os dramalhões, Os dois renegados e O homem
da máscara negra, ambos de 1839, de Mendes Leal (1818-1886); os romances Paulo, o montanhês (1853) e O génio do mal (1856/57), de Arnaldo Gama (1828-1865); Mistérios de Lisboa (1851) e A
mão do finado (1853), de Alfredo Possolo Hogan (1830-1865); a peça O castigo da vingança (1862) e os
contos, O punhal de Rosaura e Os
canibais, (1866), A febre do
jogo, A vestal, Honra antiga e J. Moreno (1867), de Álvaro Carvalhal (1844-1868); e, porque não, Mistérios de Lisboa (1853) e Livro negro do Padre Dinis (1855), de Camilo Castelo Branco (1825-1890); assim como
também, embora já algo afastado do perfil desse pequeno grupo, aquele que é
considerado, com maior ou menor aceitação, o primeiro romance policial
português:
O
MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA,
Eça de Queiroz
(Póvoa de Varzim, 25/11/1845 – Paris, 16/08/1900)
Ramalho Ortigão (Porto, 24/11/1836 – Lisboa,
27/09/1915)
Ainda hoje há quem considere a
literatura policial um género literário de segunda ordem. É um preconceito de
quem insiste em esquecer que a qualidade de uma obra não depende do tema
abordado, mas do rigor, da substância, da originalidade e qualidade com que o
mesmo é apresentado, desenvolvido, aprofundado, e até enquadrado no contexto
social. Mas reconheça-se que já são poucos os que se esquivam e se envergonham
de ser apanhados a ler, ou apenas a ter na mão, um romance policial, e que
quando o são se desdobram em justificações ridículas, pueris.
Já Siegfried
Kracauer, no seu tratado filosófico, Der
Detektiv-Roman, composto entre 1922 e 1925, escrevia: “O romance policial
que a maior parte das pessoas cultas conhecem como obra extra literária sem
valor, levando uma existência confortável nas bibliotecas de empréstimo,
conquistou progressivamente uma posição à qual dificilmente se pode contestar o
seu grau e a sua importância” (2).
Também Jorge
Luís Borges, em 1978, numa sua conferência sobre o conto policial, interrogava:
“Que poderíamos dizer como apologia do género policial?” e respondia: “Há uma
muito evidente e acertada: a nossa literatura tende para o caótico. Tende-se
para o verso livre porque é mais fácil que o verso regular, mas o contrário é que
é verdade. Tende-se a suprimir personagens e argumentos; tudo é muito vago.Nesta
nossa época tão caótica,
algo existe que,
com humildade, conservou as virtude clássicas: o conto policial. Isto porque
não se compreende um conto policial sem princípio, meio e fim. Têm-nos escrito
escritores de segunda ordem, mas alguns saíram da pena de escritores
excelentes, como Dickens, Stevenson e, sobretudo, Wilkie Collins. Eu diria, em
defesa da novela policial, que ela não precisa que a defendam; lida
presentemente com um certo desdém, vem salvando a ordem numa época de desordem.
É uma coisa meritória e que lhe devemos agradecer” (3).
E Ernest
Mandel, na introdução à sua história social do romance policial, Delightful Murder, de 1984,
declarava: “Em primeiro lugar, devo confessar que gosto de ler romances
policiais. Durante muito tempo pensei que eram um simples divertimento, uma
evasão: quando lemos um não pensamos em mais nada e, assim que acabamos de o
ler, deixamos de pensar nele. Mas este livrinho é em si próprio a prova de que
essa maneira de ver é pelo menos incompleta” (4).
Assim
como o nosso Fernando Pessoa, num texto de reflexão pessoal, confessava:
"Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda
resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o
número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto
por do melhor ano aqueles em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison
me pega na consciência ao colo…" (5)
NOTAS
(1) – Edgar Allan Pöe, Os crimes da rua Morgue, em Histórias de Mistério e Terror, Livraria
Civilização, Porto, 1966.
(2) – Siegfried Kracauer, Le Roman
Policier, un traité philosophique,
Payot, Paris, 1981.
(3) – Jorge Luís Borges, Borges, Oral, em Obras Completas,
4º volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1999.
(4) – Ernest Mandel, Cadáveres Esquisitos (uma história social do
romance policial), Edições Cotovia, Lisboa, 1993.
(5) – Fernando Pessoa, Quaresma, decifrador, Assírio &
Alvim, Obras de Fernando Pessdoa / 23, Lisboa, 2008.
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