31 de março de 2021

Para a história da literatura policial portuguesa que um dia alguém há-de escrever - 3b

 1º República (continuação)

Pessoa, Fernando - (Lisboa, 1888 - Lisboa, 1935)

Fernando António Nogueira Pessoa, poeta maior do modernismo literário da língua portuguesa.           O banqueiro anarquista, conto.                                                                                                            Publicado no nº 1 da revista Contemporânea, de Lisboa, a selecção deste conto pode parecer abusiva, mas não sendo um conto policial, apresentando-se mais como um texto filosófico, ele é, essencialmente, de acordo com o autor, um conto de raciocínio. Como tal, embora muito diferente de todos os outros que escreveu, e ser o único que completou e publicou, justifica-se aqui a sua presença, dando azo a que se recorde a sua atracção pelo policial, o que o levou a escrever textos desse género literário, embora não tantos, nem tão estruturados e completos, como terá planeado, e que só começaram a ser divulgados já muito depois da sua morte.                                                                         Fernando Pessoa foi para a África do Sul em 1896, com oito anos, só tendo regressado, definitivamente, a Portugal, em 1905, já com dezasseis anos. A sua educação foi, naturalmente, britânica, pelo que o inglês se tornou, praticamente, a sua língua natal. Já em Portugal, é ainda em inglês que escreve os primeiros poemas, e é em inglês que, nos dois anos seguintes, escreve os seus primeiros policiais, começando, presume-se, com um prefácio sobre um tal William Byng, um sargento não se sabe de quê, já falecido, que considera ter sido um raciocinador (reasoner) de uma enorme perspicácia e de uma invulgar intuição analítica, que protagonizou três de quatro histórias (tales) cuja autoria   Fernando  Pessoa entrega ao seu pseudónimo Horace James Faber. As quatro tales of a reasoner (Histórias de um raciocinador) são: The stolen document (O documento roubado), The case of the science master (O caso do professor de ciências), The case of the quadratic equation (O caso da equação quadrática), The case of mr. Arnott (O caso do sr. Arnott), nenhuma completa, a primeira ainda sem Byng, a segunda a mais desenvolvida.                                                                                                 É a partir de tais histórias que Pessoa inicia, por sua vez, um ensaio, também escrito em inglês, Detective story (História policial), sob o pseudónimo Charles Robert Anon, que também nunca chegou a completar.                                                                                                                                             Cerca de cinco a seis anos depois das tales of a reasoner, Fernando Pessoa voltou às histórias policiais, agora em português. Uma vintena de contos de raciocínio , nenhum completo, alguns apenas esboçados, outros apenas projectados. Eis os nomeados: O caso Vargas, O pergaminho roubado, A morte de D. João, A carta mágica, O roubo na Quinta das Vinhas, O desaparecimento do dr. Reis Gomes, Roubo no Banco Galícia, O caso do quarto fechado, Janela estreita, O caso do Banco Viseu, Crime, Cúmplices, O roubo na rua dos Capelistas. Para os deslindar, Fernando Pessoa criou, na esteira do inglês William Byng, um outro investigador, o português Abílio Fernandes Quaresma, médico sem clínica e de saúde frágil, viciado no álcool e no tabaco, decifrador de charadas, nascido em Tancos em 1865 e falecido em Lisboa em 1930, apresentando-o, também, como se de uma pessoa real se tratasse.                                 É em O caso Vargas, o conto mais trabalhado, pensado e estruturado, com os seus catorze capítulos que, numa fase final, poderiam desdobrar-se em mais dois ou três – todos os outros contos estariam pensados para terem, cada um deles, talvez mais três ou cinco capítulos – que pela primeira vez, Quaresma contacta a polícia e apresenta publicamente uma solução, referindo-se «ao incidente policial suscitado pela morte de Carlos Vagas e pelo desaparecimento dos planos do submarino do comandante Pavia Mendes», como O caso Vargas, e expondo o seu método de decifração de enigmas. Segundo Quaresma, a investigação deve desenvolver-se, primeiro determinando se houve crime e não suicídio ou desastre; se houve, determinar como, quando e porquê, e depois, naturalmente, determinar quem o praticou. Para isso, tendo presente que os crimes podem ser de temperamento, de impulso ou de ocasião, há que recorrer à psicologia (o estado mental do criminoso), à especulação (formulação de hipóteses), ao conhecimento (casos análogos já investigados). É toda uma teoria de racionalidade que Quaresma pratica com êxito nas suas decifrações.                                                                                      Num ensaio da autoria de Alfredo Guisado, intitulado Um drama policial de Fernando Pessoa, publicado na revista, Investigação, em 1954, o autor afirmava que o drama estático, O Marinheiro, escrito em 1913 e publicado em 1915, no primeiro número da revista, Orpheu, podia ser apontado como fazendo parte do verdadeiro aspecto policial, ou seja, tinha lugar na história da literatura policial portuguesa. Sublinhe-se, no entanto, que Fernando Pessoa nunca relacionou, O Marinheiro, com os seus contos de raciocínio.

Nesse ano: Publicação do conto, O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro.                                                                                         Travessia aérea do oceano Atlântico, de Lisboa ao Rio de Janeiro, por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. 

                                                                                                        CONTINUA

 

 

30 de março de 2021

Para a história da literatura policial portuguesa que um dia alguém há-de escrever- 3a

Na 1º República (continuação)

Dos anos que se seguiram, vejamos então o que, cronologicamente, se publicou no âmbito da ficção policial: contos, romances, folhetins, peças de teatro. Relação que não será definitiva nem completa, referenciando o editor ou local de publicação, comentando muitos deles, mas evitando juízos de valor, dando algum enquadramento histórico, cultural, político e social, certamente com títulos esquecidos e um ou outro de escolha discutível, mas, seguramente. representativa e elucidativa do passado, distante e recente, da literatura policial portuguesa, e também do seu presente, dentro de cada ano, por ordem alfabética do último nome dos autores ou do pseudónimo destes.   


                                                                               1916

Castro, Ferreira de – (Ossela, Oliveira de Azeméis, 1898-Porto, 1974)                                                        José Maria Ferreira de Castro, emigrou com 12 anos para o Brasil, tendo vivido os primeiros quatro anos num seringal em plena selva amazónica. Saído dessa situação, subsistindo embora em condições precárias, autodidacta convicto, começou a escrever, entrou no jornalismo. Regressou a Portugal, confirmou-se e romancista, popularizando-se no país e no estrangeiro, tornando-se um dos escritores portugueses mais traduzidos.                                                                                                                        Criminoso por ambição, romance.                                                                                                               O primeiro do autor, escrito e publicado ainda no Brasil, em fascículos, em Belém do Pará, que ele vendeu, de porta em porta, tinha então 18 anos. Uma recambolesca história, sobre os amores do jovem Simão, bom e pobre, e da jovem Beatriz, bonita e inocente, contrariados pelo jovem Diogo, rico e mau, marcada por lutas entre os rivais, tentativas de assassinato, rapto, peripécias várias, mas que termina a contento com o feliz casamento do jovem casal protagonista.

Nesse ano ( a 9 de março): A Alemanha declara guerra a Portugal, após a apreensão dos navios mercantes alemães fundeados em portos portugueses.     

                                                                               1917

Ferreira, Reinaldo – (Moçambique, 1897 – Lisboa, 1935)                                                                            Reinaldo de Azevedo e Silva Ferreira, jornalista, repórter, dramaturgo, realizador de cinema, ele foi, em particular, como folhetinista. Com dezassete anos, ingressou no jornal , A Capital, como aprendiz de jornalista, para o qual fez a sua primeira reportagem: um fogo posto na rua D. Estefânia. Já na redacção de, O Século, sob o pseudónimo Gil Goes, deu então início à sua primeira ficção policial, o folhetim, Os mistérios da rua Saraiva de Carvalho, um serial protagonizado por um bandido de olhos tortos, publicado entre 11 de junho e 15 de dezembro. Ainda nesse ano, escreveu para, O Mundo, a crónica, Espionagem alemã: como e por quem ela é exercida, e um relato, inventado, da passagem, por Lisboa, da célebre Mata-Hari, e da entrevista que fez à espia alemã.

Nesse ano: Publicação do romance, Húmus, de Raúl Brandão.                                                                                                      Primeiros embarques de tropas expedicionárias para França para combater os alemães.                                                              Primeira aparição em Fátima (13 de maio).                                                                                                                                    Revolta militar comandada por Sidónio Pais que assume o poder (5 de dezembro)   

                                                                                              1918

Nesse ano: O contingente militar português é dizimado, em La Lys, pelas tropas alemãs (9 de abril). Eleição de Sidónio Pais para Presidente da República (28 de abril).                                                                                                                                    Assinatura do armistício que põe fim guerra com a derrota da Alemanha (1 de novembro).                                                      Assassinato de Sidónio Pais (14 de dezembro).                                                                                                                              Surto de gripe pneumónica por todo o país, que vitimou 102.750 pessoas.

                                                                              1919

Ferreira, Reinaldo                                                                                                                                          O mistério da rua Saraiva de Carvalho, romance.                                                                                      Versão em livro do folhetim publicado no jornal, O Século, em 1917, mas deixando cair o pseudónimo e assumindo-se como autor. Entretanto vai para Paris, começando a trabalhar na filial francesa da Agência Americana, deslocando-se frequentemente a Bruxelas, Madrid e Barcelona onde acabou por se fixar.

Martins, Rocha – (Lisboa, 1879 – Sintra, 1952).                                                                                          Jornalista, fundador e director da revista ABC, historiador, escritor, activista político.                              A grande ladra, folhetim publicado no jornal, O Século, entre 14 de julho e 6 de outubro, que narra o confronto entre Arsène Lupin, que cobiça os tesouros dos nossos museus e a sua rival portuguesa, Maria Ribalda, a grande ladra.                                                                                                                                  O crime de Vila Lilás, conto publicado em, O Século, de 15 de agosto

Nesse ano: Publicação do romance, Terras do Demo, de Aquilino Ribeiro.                                                                                  Eleição de António José de Almeida para Presidente da República (agosto).                                                                                Criação da Confederação Geral do Trabalho e da Confederação Patronal.                                                                                    Criação da Faculdade de Letras do Porto.   Censo da população: 5 621

                                                                                             1920

Nesse ano: Início da publicação dos, Ensaios, de António Sérgio.                                                                                                Publicação do livro de poemas, Canções, de António Botto.                                                                                                          Publicação do livro de poemas, Clepsydra, de Camilo Pessanha.                                                                                                  Censo da população: 5 621977                                                                                            

                                                                                              1921

Ferreira, Reinaldo                                                                                                                                          Publicação, em Barcelona, dos romances, El negro y El blanco, e, El hombre del méchon blanco, e do folhetim, El botones del Ritz, no jornal, El Liberal.

Portela, Severo – (Cedofeia, Porto, 1875-1945)                                                                                            O crime de Lagarinhos, conto publicado na revista, A Novela Portuguesa, de 1 de março.

Nesse ano: Publicação do primeiro número da revista, Seara Nova, no dia 15 de outubro.                                                          Fundação do Partido Comunista Português (6 de março).                                                                                                              Revolta, em Lisboa, da GNR e da Marinha.   Assassinato do chefe do governo, António Granjo.

                                                                                              1922

Lacerda, Armando de – (Porto, 1902 – Coimbra, 1984)                                                                                Professor Universitário.                                                                                                                                O mistério da casa Thompson, narrativa.                                                                                                    Edição de auto

29 de março de 2021

Para a história da literatura policial portuguesa que um dia alguém há-de escrever - 3

E, porque não, avançar, também, com o segundo capítulo, e, talvez, mesmo, por aí fora até ao fim?

Na 1º República  

No dia 4 de outubro de 1910 rebenta a revolução com a insurreição, em Lisboa, de vários quartéis. A Marinha adere, o Palácio das Necessidades é bombardeado, o rei foge, a resistência das forças da ordem é desordenada e pouco empenhada, o golpe tem êxito. No dia seguinte, 5 de outubro de 1910, Portugal despede-se da Monarquia que o dirigia há oito séculos, proclamando a República.   No ano seguinte, em maio, dá-se a eleição da Assembleia Nacional Constituinte que, a 19 de junho de 1911, aprova a Constituição Política da República, e em agosto é eleito o primeiro Presidente da República Portuguesa, Manuel Arriaga.                                                                                                                                            Em 1914, rebenta a guerra na Europa, entre a Alemanha, França e a Inglaterra, que leva à intervenção dos EUA, e também nos arrasta para ela, espalhando-se um pouco por todo o mundo. Termina quatro anos depois, com a derrota da Alemanha e a assinatura do Armistício, no dia 11 de novembro de 1918, ficando conhecida como a 1º Grande Guerra Mundial.                                                                                A literatura policial portuguesa esteve praticamente ausente nos primeiros tempos desse período, o fim da monarquia e os primeiros dez a quinze anos da república. As excepções encontradas, a registar, são alguns textos abusivo, implicando o mítico Sherlock Holmes: As victórias da lógica: aventuras de Sherlock Holmes (1910), do estudante de Coimbra, português de origem sueca, Gustaf Adolf Belgström (1880-1916); Sherlock Holmes intrujado por Jack O Estripador (1910), de Hermano Neves (1884-1929); Um imitador de Sherlock Holmes (1910), de Maria O’Neil (1873-1931); Sherlock Holmes no Porto: O cadáver que se evade, e, O «truck» de mr. Raymond (1912), de João de Meira (1881-1913), sob o pseudónimo Donan Coyle; O esqueleto desaparecido, e, O suicídio por engano, ambos de 1912, do humorista André Brun (1881-1926), sob o pseudónimo Félix Pevide; as peças Sherlock (1911), de Chagas Roquete (1875-1940) e Álvaro Lins; e para além de tais “brincadeiras” à custa do célebre detective: a peça O reposteiro verde (1912), de Júlio Dantas (1876-1962); O crime da avenida 33 (1914), de Luís Barreto da Cruz (1872-1948) e Manuel Neves (1875-1966); A cilada (1914), de Pedroso Rodrigues (1883-?); e três obras de cariz judiciário: O s criminosos portugueses. Estudos de antropologia criminal (1913), de António Augusto Mendes Correia (1888-1960); Os crimes da formiga branca: confidências verídicas e sensacionais d’um juiz de Investigação (1915), cinco fascículos, sem menção de autor; Páginas de sangue. Brandões, Marçais & Cª (1919), de Alberto Mário de Sousa Costa (1879-1961).                                                                                                                                                No entanto, em 1915, surge um texto cujo enredo e estrutura, para além da qualidade literária, permite, considera-lo uma história policial:                                                                                                                  A estranha morte do Professor Antena, de Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 - Paris, 1916)                Na sua curtíssima vida de 26 anos, Mário de Sá-Carneiro, nos quatro últimos, marcou presença na literatura portuguesa, primeiro na prosa, como contista, depois como poeta modernista, tendo feito parte do grupo Orpheu, ao lado de Fernando Pessoa de quem foi amigo íntimo.                                            Como contista, Mário de Sá-Carneiro foi um escritor do negro, do horror, que glosou obsessivamente os temas da loucura e da morte, do estranho, do inexplicável.                                                                          No seu primeiro livro, Princípio (1912). Os títulos que nele se encontram são bem elucidativos: Loucura, O sexto sentido, O incesto, Página de um suicida, A profecia. Em, A confissão de Lúcio (1914), uma tragédia moral, é a ambiguidade do sobrenatural que se intui. Finalmente, com Céu em fogo (1915), na companhia de mais sete contos que confirmam as obsessões, as angústias e fobias do autor, lá vem, A estranha morte do professor Antena. É uma narrativa onde há uma morte, um mistério e uma investigação. A morte é a do professor e o mistério é a estranheza dela, revela-nos o título. A investigação é a do próprio narrador. À frente dos seus olhos, e só dos seus, petrificado, horrorizado, ao dobrar uma curva da estrada, na companhia do professor, viu: «… o Mestre estaca… Todo o seu corpo vibrou numa ondulação de quebranto…. Ergueu o braço… Apontou qualquer coisa no ar… Um ricto de pavor lhe contraiu o rosto… As mãos enclavinharam-se… Ainda quis fugir… Estrebuchou… Mas foi-lhe impossível dar um passo… tombou no chão… o crânio esmigalhado, as pernas trituradas… o ventre aberto numa estranha ferida cónica…». A quem acorreu, a todos os presentes e ausentes, à polícia, o que pode ele dizer-lhes para que acreditem nele? A solução é inventar um atropelamento e fuga, por um carro que nunca se vai encontrar.  A explicação do inexplicável, cai no fantástico, na ficção científica, mas é a única que o investigador/narrador consegue obter e, muito mais tarde, oferecer ao mundo. O professor Antena terá confirmado a existência de mundos sobrepostos, paralelos, tendo construído um aparelho que torna possível uma espécie de viagem no tempo, que permite que uma pessoa viva no mesmo momento em dois mundos diferentes. Mas algo corre mal e o resultado da experiência é a sua trágica morte e a destruição do dito aparelho. E finaliza assim:                 «… E na memória do Prof. Domingos Antena, devemos sempre relembrar, atónitos, aquele que, por momentos, foi talvez Deus – Deus , Ele-Próprio: que realizaria, num instante, o Deus que nós criámos eternamente.»

                                                                                                                                           CONTINUA

Regiana Magna

Do Porto, de mão amiga, recebi a oferta do livro em título, de quem é um dos autores, que recorda e presta homenagem a José Régio, figura grada da literatura portuguesa, a propósito do cinquentenário do seu falecimento. Um livro de sete contos, aliciantes, de sete autores, amigos fiéis e saudosos do homenageado, que neles abordam, por vezes, algo de misterioso e fantasioso que me ultrapassa, cuja leitura me prendeu e prende, e que, muito sinceramente, aconselho.                                                                                                  Obrigado, caro Álvaro Holstein

27 de março de 2021

Para a história da literatura policial portuguesa que um dia alguém há-de escrever - 2

No passado dia 17 de fevereiro inseri, aqui, no Manojas, a INTRODUÇÃO, do texto em título, texto que tenho mantido, ignorado e engavetado. Resolvi, agora, avançar e dar também a lume o primeiro capítulo dele. Ei-lo:   

DA MONARQUIA                                                                                                                                   No Portugal monárquico, a literatura policial, sem tradição, existiu, embora sem grande destaque ou qualidade. Os antecedentes foram as más traduções, quase sempre do francês, dos contos e romances góticos, e depois, influenciados por tais textos, o teatro de horror e a novelística negra. As primeiras obras, com características que faziam adivinhar a futura ficção policial, encontram-se à volta do início da segunda metade do século XIX. Exemplo disso são: os dramalhões, Os dois renegados e O homem da máscara negra, ambos de 1839, de Mendes Leal (1818-1886); os romances, Paulo, o montanhês, de 1853, e O génio do mal, de 1856/7, de Arnaldo Gama (1828-1865); Mistérios de Lisboa, de 1851, e A mão do finado, de 1853, de Alfredo Possolo Hogan (1830-1865); a peça teatral, O castigo da vingança, de 1862, e os contos, O punhal de Rosaura e Os três canibais, de 1866, A febre jogo, A vestal, Honra antiga e J. Moreno, de 1867, de Álvaro Carvalhal (1844-1868); e porque não, O esqueleto, de 1844, Anátema, de 1851, Mistérios de Lisboa, de 1853, e Livro negro do Padre Dinis, de 1855, de Camilo Castelo Branco (1825-1890); assim como, também, embora já algo afastado do perfil desse pequeno grupo, aquele que é considerado, com maior ou menor aceitação, o primeiro romance policial português:                                                                                                                                                                                                    O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA, de                                                Ramalho Ortigão (Porto,1836-Lisboa,1915) e Eça de Queiroz (Póvoa do Varzim,1845-Lisboa,1900) 

Foi publicado em folhetim no jornal, Diário de Notícias, entre 24 de Julho e 27 de Setembro de 1870, tendo a sua divulgação sido feita através de cartas, supostamente relatando acontecimentos verídicos, enviadas, gradualmente, para a redacção do jornal, doze anónimas e uma décima terceira, a última, em que os seus autores se identificam e confessam, não há um só nome que não seja suposto, nem um só lugar que não seja hipotético.                                                                                                              Muito resumidamente, porque a saga é longa e tem ramificações, tudo começa com o rapto, ocorrido na estrada de Sintra, de um médico e do amigo que o acompanhava, por quatro encapuzados que os levam para uma casa desconhecida. Nesta casa encontra-se um homem inanimado, que os raptores sabem ser um oficial inglês, e o que eles pretendem é que o médico lhes confirme a sua morte. Entretanto são surpreendidos pela chegada de um jovem que, aparentemente, ia com o propósito de esconder o cadáver, pelo que se torna suspeito de ser o assassino. O jovem confessa a intenção e esclarece o mistério. A morte do oficial tinha sido acidental. Fora a condessa de W., prima de um dos raptores e amante do inglês, que, ciumenta, desconfiando que ele era casado e querendo vasculhar os seus papéis, tentara adormecê-lo com ópio, mas a dose fora excessiva. A condessa é chamada à casa onde estão os raptores, os raptados e o jovem, e confirma o sucedido. Acabam todos por acordar em enterrar o pobre oficial e manter tudo em segredo. A condessa recolhe-se a um convento.             Catorze anos mais tarde, com o romance já editado em livro, os seus autores, sem repudiarem o romance partilhado por ambos (“nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se do seu trabalho”), produto de uma mocidade saudavelmente indisciplinada e rebelde, reconhecem, sem pejo, que ele é execrável (“porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar”). Mas sensíveis à simpatia que o público lhe tem demonstrado, só veem razões para saudar e autorizar a sua reedição.                                                                                      As extraordinárias peripécias, supostamente ocorridas à volta de Sintra, comoveram e assustaram quem durante aqueles dois meses avidamente leu o Diário de Notícias, e nelas acreditou. Mas, infelizmente, parece não terem motivado os nossos escritores para a literatura policial, pelo menos durante os trinta anos que faltavam para o fim do século, dada a escassez de obras que a representam. De tal penúria, destaque-se, no entanto, uma excepção: Francisco Leite Bastos (Lisboa, 1841-1886).        É de supor que a leitura de, O mistério da estrada de Sintra, minimamente incentivou o escritor para o género policial que cultivou, (que o não tenha lido, ou sequer conhecido, é impensável), ele, que na altura da publicação, tinha vinte e nove anos e era colaborador do Diário de Notícias.                 Francisco Leite Basto teve uma vida  (1571-1632), de quarenta e cinco anos, marcada por diversas extravagâncias, frenesins e empreendimentos mal geridos, que lhe dissiparam duas pequenas heranças, primeiro a do pai, depois a da mãe.                                                                                                Com alguns estudos, mas sem qualquer curso, a sua paixão era escrever e, assim, aos vinte e poucos anos, resolveu passar a viver da escrita. Daí resultou uma obra vasta, diversificada, de crónicas e contos em jornais e revistas: Crónicas das pequenas misérias, Contos da minha lavra, Primaveras de Cintra, Bernardices do século, Romances contemporâneos, Fantasias da mocidade; mas também romances: Sapatos de defunto e A calúnia; e peças de teatro, as comédias: Consequências de uma inicial, Malditas cartas, O número 13, e os dramas: As glórias do trabalho, os trapitos de Lisboa, Honras do pobre, Dois contos por dia, Abençoados infortúnios, O profeta, O anjo do lar, Os voluntários da morte, Lágrimas de redenção, A pena de morte.                                                                                                                          Mas Francisco Leite Bastos, se ainda hoje é recordado, é devido às suas obras de cariz policial. Por elas é considerado um dos precursores da literatura policial portuguesa. Registamo-las, ressalvando, desde já, que as quatro primeiras, na verdade, mais judiciárias que policiais, são a dramatização romanceada da vida de quatro personagens reais, dos seus crimes e das punições que sofreram.                        O crime do Corregedor: Gabriel Pereira de Castro (1571-1632), presbítero, desembargador e corregedor do crime, nesta última qualidade condenou à tortura e à morte Simão Lopes Solis, acusado de ter roubado objectos sagrados de Santa Engrácia, crime de que mais tarde se soube estar inocente. A vítima seria amante de uma freira por quem o corregedor se apaixonara, e teria sido esse facto que influiu na sentença cruel e injusta. A má consciência perturbou mentalmente os últimos anos de vida do corregedor.                                                                                                                                                      O crime de Mattos Lobo, de 1870: Mattos Lobo, seminarista, pertencente a uma família conservadora e miguelista, de mentalidade exacerbadamente romântica, apaixonou-se por uma sua tia por afinidade, mais velha, mas de grande beleza, francesa, viúva, e vivência liberal. Por não ser correspondido, louco de ciúmes, num desvario, matou a tia, as duas filhas dela, e a criada. Condenado à morte, foi executado por enforcamento, no Cais do Tejo, em Lisboa, no dia 16 de abril de 1842. Foi a última execução em Portugal, apesar da abolição só se ter verificado em 1867.                                                                          Os crimes de Diogo Alves, de 1877): Diogo Alves, galego, nascido em 1810, no bispado de Lugo, ainda rapaz, veio para Lisboa. Tendo trabalhado em várias casas de gente abastada, foi moço de cavalariça e trintanário, mas acabou por ser despedido por agressividade e mau comportamento. Analfabeto, desempregado e com má fama, enveredou pela ladroagem, pelo banditismo, tornando-se um facínora de maus instintos que assaltava as suas vítimas no Aqueduto das Águas Livres, local que escolheu para actuar, roubando-as e atirando-as depois do cimo do mesmo. Preso e condenado à pena de morte, foi executado em fevereiro de 1841.                                                                                                                  O incendiário da Patriarcal: Alexandre Franco Vicente, por três vezes, pegou fogo à Patriarcal, para esconder os roubos que nela praticava. A primeira, em 10 de maio de 1769, quando ela se situava na que é hoje a Praça do Príncipe Real, a segunda no dia 31 de outubro de 1771, fora ela para o convento de S. Bento, onde actualmente se situa a Assembleia da República, e a terceira, cerca de um ano depois, mudara-se a Patriarcal para S. Vicente de Fora. Suspeito, devido à missão de armador que tinha na igreja, fugiu, mas acabou por ser preso e condenado à morte, depois de ter confessado os crimes. Morreu na fogueira, no local do primeiro incêndio, em 1773.                                                                     As Tragédias de Lisboa, de 1878/9: Uma interminável e clamorosa saga, em quatro volumes, onde sobressai um personagem sinistro  em A corda do enforcado Wassily. Os títulos dos seus vários capítulos dão uma ideia da obra: O homem demónio, Os invisíveis de Lisboa, Proezas de Satan, Pacto do crime, Nas esferas douradas, O testamento do milionário, O clube das gravatas lavadas, O cadáver do Rio Seco, Proezas de Wassily, O segredo do Maçon, As memórias do finado, Glória do amor.              As Maravilhas do Homem Pardo de, 1876: Outra extensa saga, relatada em três volumes, verdadeiramente rocambolesca, pois dá continuação à última aventura de Rocambole, relatada em A corda o enforcado, último episódio do livro, Os dramas de Paris, de Ponson du Terrail. A obra foi publicada como se o autor fosse o escritor francês e Leite Bastos o responsável pela tradução.                  Para  de além de Leite Bastos, é ainda de mencionar: de Estevão Gonçalves de Castro Barreiros, a peça teatral Crime e Punição, de 1874; de Casimiro Tomás Chaves, Mistérios da Polícia Civil da Nova Companhia do Olho Vivo e dos Gatunos e ratoneiros de Lisboa, de 1879; de Fialho de Almeida (1857-1911), o conto O roubo, de 1881; de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921), sob o pseudónimo Valentina Lucena, Literatura criminal, de 1888; de Gervásio Lobato (1850-1895, os romances, Os invisíveis de Lisboa, de 1886/7, Os mistérios do Porto, de 1890, O grande circo, de 1893), e a peça teatral, Comissário da polícia; de Raul Brandão (1867-1930), a novela A morte do palhaço, de 1896; de Eduardo Barros Lobo (1857-1893), sob o pseudónimo de Beldemónio, o conto, O cadáver, de 1896; de João Chagas (1863-1925), O crime da sociedade, de 1897;  de Francisco Teixeira de Queirós (1849-1919), sob o pseudónimo de Bento Moreno, o conto, A vingança do morto; de Oliveira Mascarenhas (1847-1918), Crimes célebres e Contos e casos; de Eduardo Fernandes (1870-1945), Galeria de criminosos célebres em Portugal, de 1896/8, em três volumes; e ainda As memórias do chefe Jacob, uma série de entrevistas de Rocha Martins (1879-1952), ao próprio chefe Jacob, polícia conceituado, publicadas pela Ilustração Portuguesa, entre 15 de julho e 16 de Setembro de 1907, e Os mistérios da Parreirinha (Romance do Juízo de Instrução Criminal), de 1908, de Pedro Reinal.                              Em fevereiro de 1908, deu-se o regicídio, o rei D. Carlos e o seu primogénito, o príncipe Luís-Filipe, são assassinados, pelo que subiu ao trono D. Manuel, filho mais novo de D. Carlos, que viria a ser o último rei de Portugal.

 

 

    

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           


23 de março de 2021

Literatura de ficção científica - 8

UTOPIAS

Utopia, lugar de parte nenhuma, é um mundo ideal fora do espaço e do tempo, sociedade sonhada, que se ambiciona perfeita, irreal, que sempre surge como sintoma, aspirando ser solução, de uma crise que se advinha e receia.

As utopias soviéticas nasceram da crise política que desabou na URSS, após a morte de Estaline. No verão/outono de 1965, logo a seguir ao histórico XX Congresso do PCUS, durante o qual Khruchtchev denunciou os crimes de Estaline, o escritor Ivan Efremov concebeu um romance que iria revolucionar a literatura de ficção fantástico-científica soviética, o célebre, A nebulosa de Andrómeda.                                                                        A nebulosa de Andrómeda é uma utopia clássica do século 20, situada no século 30, durante a Era do Grande Círculo. A cultura, a ciência e a técnica alcançaram na Terra o mais alto nível. Uma única sociedade comunista, une, fraternalmente, todos os povos terrestres. O grande objectivo da humanidade é, agora, a vitória sobre o espaço e o tempo, a passagem ao espaço-zero, a possibilidade de comunicação directa e imediata entre todas as civilizações do Universo.                                                                                                                               Na Era do Grande Círculo não há políticos profissionais, não há cargos de responsabilidade ocupados pela mesma pessoa durante muitos anos, não há um governo, mas sim uma governação colectiva de Conselhos, apoiados por Academias especializadas, que decidem em comum, havendo ainda um Conselho de Sábios para resolver possíveis diferendos.    Descrevendo uma futura sociedade comunista, perfeita, harmoniosa e avançada, com pessoas, concepções, situações e técnicas fantásticas, tão longínqua e tão difícil de conceber, Efremov faz, corajosamente, por contraste uma crítica social e política à sociedade comunista soviética do seu tempo.                                                                                  Da lista dos melhores escritores soviéticos de ficção científica da geração de 60 saída da crise que se abatera sobre a União, que tiveram como mestre reconhecido Ivan Efremov e como marco exemplar A nebulosa de Andrómeda, figuram os irmãos Arkadi e Boris Strugatski.                                                                                                                                                O primeiro livro dos Strugatski publicado em Portugal foi, Que difícil é ser Deus. Datado de 1964 é um dos seus trabalhos mais divulgados e elogiados, pelo tema e pelo conteúdo. Ele contém uma mensagem extremamente lúcida e corajosa: não ingerência.                                                     O historiador-explorador temporal Anton e a sua equipa, em missão de observação num planeta que vive a sua idade média, luta consigo próprio para não interferir em acontecimentos, imprevisivelmente violentos e condenáveis, que para além do mais, o afectam sentimentalmente. Ele pode fazê-lo, tendo atrás de si todo o enorme poder da ciência e da técnica da Terra, ele é, ali, naquele planeta, um deus. Mas pode um deus privar a humanidade da sua natural evolução, da sua história? Substituir uma humanidade por outra humanidade?

 

22 de março de 2021

Literatura de ficção científica - 7

MARGARITA E O MESTRE ou O MESTRE E MARGARITA

Desconheço o motivo ou motivos de o livro ter sido sempre editado em Portugal, com o título, Margarita e o Mestre, quando no original ele se intitula, O Mestre e Margarita. Adiante.                                                                                                                                       Mikhail Bulgakov, autor de grande talento, contista, romancista, dramaturgo, não pode ser considerado como um escritor de ficção científica, embora tenha recorrido a ela, e muitas vezes, também, ao fantástico e ao diabólico, tornando mais ácidas e inquietantes as suas sátiras sociais.                                                                                                                            Margarita e o Mestre, para além de muito mais, é, sem dúvida, uma sátira social. Um muito mais que engloba, igualmente, e não só, sátira política e alegoria religiosa. Um romance de humor muito negro, que elogia a bondade e condena a cobardia, e apela à consciência e à compreensão dos leitores, das pessoas, do povo, para as muitas peripécias, ora divertidas ora aterradoras, sempre inesperadas, que o compõem. Um livro único, inclassificável, que o seu autor começou a escrever em 1928 e não mais largou, até à sua morte, em março de 1940, quatro semanas depois de ter preparado uma quarta versão. Foi publicado pela primeira vez na revista Moskva, em versão censurada, uma parte em novembro de 1966, e o restante em Janeiro de 1967. Só em 1973, em Frankfurt e Moscovo, foi publicada uma primeira versão integral.                                                                                                                                       O romance divide-se em duas partes que contêm duas narrativas que se entrelaçam, uma passada em Moscovo, calcula-se que em 1929, outra em Jerusalém, possivelmente no ano 29.                                                                                                                                      Dando o nome ao livro, Margarita e o Mestre apresentam-se como os seus protagonistas, mas talvez não fiquem mais  na memória do leitor do que, Woland, o diabo em figura de gente, com um olho preto, o direito, e um olho verde, o esquerdo, e os seus sequazes. Beguemot, um gato preto, grande como um porco que anda sobre as patas traseiras, fala, bebe, e bebe vodka, o ruivo Azazello, uma espécie de anão, forte, feioso e maldoso, Koroviev, um verbalista magricela, alto, de lunetas, e a bruxa Gella, uma rapariga completamente nua, ruiva, de olhos ardentes e fosforescentes. Aparecidos aleatoriamente, sem se saber bem porquê, eles são seres assustadores, provocadores, responsáveis por todos os estranhos , chocantes e trágicos acontecimentos ocorridos , e, no fundo, os denunciantes do muito que há de errado, de injusto e de condenável na sociedade moscovita.                     O Mestre, na sua primeira aparição, é um homem dos seus 38 anos, barbeado, de cabelo escuro, nariz afilado, olhos inquietos, e com um anel de cabelo caído para a testa. Margarita, paixão do Mestre, é uma mulher de trinta anos, bela e inteligente, casada, sem filhos, rica, também por ele apaixonada, sua amante. O Mestre, escritor, é o autor de um livro a que chamou Pôncio Pilatos, que mais não é do que a narrativa do que se passou em Jerusalém, no ano 29, entre o Procurador da Judeia e Ieshua (Jesus), e os motivos e consequências desse encontro. Mas o livro é a sua desgraça. O editor recusa, com desprezo, publicá-lo, e dá o manuscrito a ler a vários críticos que arrasam a obra e o autor. O Mestre é acusado de antiteísmo, numa sociedade legalmente ateia, por escrever sobre figuras religiosas como se estas tivessem existido, como se fossem figuras históricas. Acusações e insinuações sucedem-se, e ele, desesperado, queima o manuscrito, enlouquece e é internado.  .                             Em face do acontecido, para o salvar, Margarita, que o incentivara a publicar o livro, vende a alma ao diabo, recorre a Woland, que afirmara já ter presenciado o encontro de Pôncio Pilatos com Ieshua, o que confirmava como real o que o Mestre escrevera no seu livro, aceitando o convívio  com ele e os seus acólitos, acompanhando-os nas suas alucinantes deambulações por Moscovo. Assim, Margarita vira bruxa e, montada numa vassoura, nua, voa sobre a cidade, e pratica várias tropelias culminadas com a entrada no apartamento de um dos maldosos críticos literários do Mestre, destruindo-o completamente. Depois, nada perturbada com o seu louco voo nocturno, aceita ir ao grande baile de Satã com Woland e o seu bando, sendo banhada em sangue, vestida com um manto rosado a cheirar a rosas, sapatos de pétalas e fivelas de ouro, coroa de diamantes, um pesado medalhão oval, enfim, como uma rainha. Ela será a anfitriã daquela multidão de convidados, só aparecidos depois da meia-noite, que lhe beijam a mão, o pé, o joelho, a fímbria do vestido, reis, duques, cavaleiros, suicidas, envenenadores, enforcados, procuradores, carcereiros, batoteiros, carrascos, informadores, traidores, loucos, espiões e sedutores, até Calígula e Messalina, todos já castigados e mortos a fingir que estão vivos. Woland reconhece a coragem, o sacrifício, a disponibilidade de Margarita, e resgata o Mestre, junta os dois amantes e entrega-lhes o manuscrito recuperado.                                                                                     O manuscrito do Mestre, sobre Pôncio Pilatos, ocupa quatro capítulos do romance, dois na primeira parte, dois na segunda. Começa com a descrição do encontro do procurador da Judeia, Hégemon, com Ieshua, o diálogo entre eles, o local e o ambiente em que decorre. Preso e acusado de incitar o povo à destruição do templo, Ieshua afirma que a acusação não corresponde à verdade. Os escritos sobre o que dissera, da autoria de Mateus Levi, alguém que o ouvira e resolvera ser seu companheiro, estavam errados, tinham sido mal interpretados. O que proferira fora que o Templo da antiga fé caíria e se ergueria um novo templo da verdade. Pôncio Pilatos admira-se de nada mais haver que incrimine Ieshua pelas desordens ocorridas na cidade, para além da pretensão de saber o que é a verdade. Mas surgem denúncias bem mais graves, sobre palavras contra o Estado, que implicam uma condenação à morte. A um tal Iehudh de Kerioth (Judas de Carioth), que lhe dera hospitalidade, Ieshua declarara, entre outras coisas, que todo o poder é uma violência sobre as pessoas e que virá um tempo em que não haverá poder, nem dos Césares nem qualquer outro. O homem entrará no reino da verdade e da justiça, onde não será necessário nenhum poder.                                                                                                                                    Confirmada a sentença de morte, que o sumo sacerdote judaico José Caifés, presidente do Sinédrio, não quis revogar, como a lei e o costume lho permitiam, em honra da festa da Páscoa que decorria nesse dia, preferindo libertar um criminoso, aparentemente bem mais perigoso.  Ieshua é levado para o monte Calvário para ser executado. Com ele vão mais dois condenados, cada um levando ao pescoço uma tabuleta com os dizeres: bandido e rebelde. Rodeiam-nos soldados romanos de infantaria e de cavalaria e para lá deles a populaça curiosa. A pena é de serem pendurados em postes até à morte. Assim acontece, mas ao anoitecer, um encapuçado, supostamente a mando do Procurador, vem ordenar aos carrascos para acabar-lhes com o sofrimento, ordem que eles executam utilizando as suas lanças. Mais tarde, já noite alta, o cadáver de Ieshua será libertado do poste e levado por Mateus Levi, o único a permanecer no local, onde sempre esteve, testemunhando os suplícios.                      O encapuçado é Afrânio, o chefe da polícia secreta de Pôncio Pilatos, que lhe vem relatar tudo o que se passou no monte Calvário, que lhe confirma a morte dos condenados, principalmente da de Ieshua. Ieshua perturbou Hégemon, que sabe que ele não era um bandido, o que o faz sentir-se estranhamente culpado, mas que pressentiu o perigo que ele representava, e por isso não chega sabê-lo morto, quer que ele seja enterrado em local desconhecido, quer que ele desapareça da face da Terra. Além do mais, também quer que Afrânio proteja o traidor Judas, que recebeu ou vai receber dinheiro do velho Caifés por aquilo que fez. Ele sabe que os amigos de Ieshua querem assassiná-lo e denunciar o aliciamento.                                                                                                                       Surpreendentemente, quem prepara o assassinato de Judas é o próprio Afrânio que faz com que ele seja atraído para fora da cidade e anavalhado pelos seus agentes. A história que ele depois engendra para explicar o acontecido, propondo-se mesmo ser preso e julgado por não ter conseguido proteger a vítima, é recebida por Pilatos com tal compreensão e boa disposição, que fica a dúvida se desejava mesmo salvar Judas, se não seria mesmo a morte deste que pretendia.    Depois de Afrânio, a quem, magnânimo, perdoa a incompetência e reforça a confiança, Hégemon recebe Mateus Levi, oferece-lhe comida, que é recusada, e exige-lhe o pergaminho onde estão os escritos sobre Ieshua, não para ficar com ele, mas para ler o que lá está. Depois devolve o pergaminho que se apresenta ensanguentado e sujo, e propõem-lhe emprego e oferece-lhe dinheiro. Levi volta a recusar e diz que irá matar o traidor Judas, mas fica de boca aberta quando o Procurador da Judeia lheconfessa que Judas está morto e que foi ele que o matou. Levi aceita então, e apenas, um pergaminho novo.       Este Mateus Levi, discípulo de Jesus, é o mensageiro, aparecido do nada, que vem falar com Woland, espírito do mal e senhor das trevas, sobre o destino do Mestre e Margarita, com qual tem o seguinte diálogo:                                                                                                       Mateus Levi: Foi ele que me mandou.                                                                                       Woland: E que te mandou ele comunicar-me, escravo?                                                             Mateus Levi: Eu não sou escravo - respondeu zangado - Sou seu discípulo.                             Woland: Falamos linguagem diferentes, como sempre. Então?...                                    Mateus Levi: Ele leu a obra e pede-te que o leves contigo e o recompenses com o repouso.    Woland: E porque não o levas convosco, para a luz                                                                    Mateus Levi: Ele não mereceu a luz, mereceu o repouso - disse com voz triste.                       Woland: Diz-lhe que isso será feito. E desaparece, imediatamente.                                          Mateus Levi: Ele pede que levem também aquela que o amou e sofreu por ele.                        Woland: Sem ti nunca teríamos pensado nisso. Desaparece .

 

 

 

 

21 de março de 2021

Literatura de ficção científica - 6

 AS DIABRURAS DE BULGAKOV

Mikhail Afanassaievitch Bulgakov nasceu em Kiev, em 1891, e morreu em Moscovo, em 1940, com 49 anos. Era filho de um professor da Academia de Teologia de Kiev e estudou medicina na Universidade da mesma cidade, tendo-se licenciado em 1916. Exerceu a profissão de médico durante cerca de quatro anos, actividade que depois abandonou, para se dedicar exclusivamente à escrita. Em fins de 1921 partiu para Moscovo e lá se instalou para sempre.                                                                                                                                  Romancista e dramaturgo, Bulgakov foi durante toda a sua vida de escritor e ainda por muitos anos após a sua morte, um autor maldito, com quase toda a sua obra silenciada e esquecida. Foi o preço que pagou pelas suas diabruras, que mais não foram que os seus escritos: contos, novelas, romances, relatos, peças teatrais, uma biografia. Aliás, foi o título de uma obra sua que inspirou o título deste texto. Refiro-me a Diaboliada, nome original transliterado de uma novela onde se conta como dois gémeos causaram a perda de um secretário. A melhor tradução a dar-lhe talvez fosse, Obra do diabo, mas entre nós chamou-se-lhe, Feitiçaria.                                                                                                                        É una sátira amarga e aterradora, sobre gente vulgar vivendo acontecimentos invulgares, que o autor data com precisão.  Tudo começa no dia 2o de Setembrode 1921, ni início da NEP, em Moscovo, ao ser anunciada falta de dinheiro para os ordenados, no Depósito central e principal dos materiais fosforeiros, SPIMAT, e dadas instruções para o pagamento dos mesmos ser feito em produtos manufacturados. Não sendo, por ventura, uma história de FC, é inegável que há muito de fantasticamente diabólico no frenético desenrolar dos acontecimentos e, principalmente, no encarniçamento de uns tais irmãos Calçoeiro contra a sua vítima, o pobre Korotkov, secretário titular do SPIMAT, que só aspira a uma vida linear, sem imprevistos e responsabilidades, e é num clima de completa alucinação que este, no fim, em desespero de causa, se suicida, gritando: "Antes a morte que a desonra!                    Feitiçaria incluía, além de duas pequenas narrativas alheias à FC, a novela, Ovos fatídicos, que juntamente com a novela, Coração de cão, publicada, independentemente, são as duas obras que mais referenciam Bulgakov com a FC, embora se lhes possa juntar a peça teatral, Adão e Eva, escrita em 1931, mas só publicada na URSS, em 1987, na revista Oktiabr, não havendo dela tradução portugesa. A peça tem como pano de fundo uma guerra total entre a Rússia e o Ocidente, sendo como que uma previsão do que é hoje para nós a meaça de um desastre nuclear, tema muito utilizado na literatura de FC.                                                        Em Os ovos fatídicos, o professor Persikov, uma autoridade em anfíbios e ré<pte<is, sábio de reputação mundial, director do Instituto de Zoologia de Moscovo, descobre, meramente por acaso, durante as suas experiências, um raio que aumenta com incrível rapidez a actividade vital dos organismos inferiores. A notícia espalha-se e, simultaneamente, por coincidência, desencadeia-se uma doença mortífera entre as galinhas. Um tal Aleksandt Rokk consegue , então, autorização para utilizar o invento do professor em ovos de galinha importados, para repovoar as capoeiras do país, sendo nomeado director da herdade colectiva «O Raio Vermelho». E a experiência efectua-se mesmo antes de ser devidamente testada a aparelhagem montada por Persikov e de se conhecerem, minimamente, as consequências práticas do seu funcionamento. Só que, devido a um engano trágico, os ovos enviados para a herdade não são de galinha, mas ovos de serpente que se destinavam ao laboratório do Instituto. O resultado é a proliferação, na herdade, de serpentes gigantescas que matam e destroem indiscriminadamente e ameaçam invadir Moscovo. O professor Persikov e os seus ajudantes são linchados pela população enlouquecida e, inesperadamente, são o frio e o gelo do rigoroso inverno russo que acabam por destruir os monstros, quando o exército já dá sinais de esgotamento.                                                        Se, relativamente ao ano em que foram escritas, tais novelas, Feitiçaria pertence ao passado e Os ovos fatídicos, que decorre entre abril e agosto de 1928, se projecta no futuro próximo, a história de Coração de cão é bem do presente.                                                                        O estranho acontecimento é menos aparatoso e não tem as mesmas terríveis repercussões, mas não deixa de ser deveras inquietante. O professor Preobrajenski, reputado cirurgião, e o seu fiel discípulo, o doutor Bormental, efectuam num cão vadio, chamado Charic, que o professor atrai a sua casa, uma operação de transplante, substituindo no animal a hipófase e os testículos, incluindo o epidídimo e o cordão testicular, pelos correspondentes órgãos humanos. O cão pachorrento e dedicado transforma-se, gradualmente, em algo como um homem, um patife pomposo e falso que resolve apelidar-se de Charikov. E se os problemas que resultam de tal situação não chegam a ser trágicos, são suficientemente perturbadores e comprometedores para obrigarem os dois cientistas a acabarem com o monstro e a recuperarem o cão.                                                                                                                   O que o professor Preobrajenski ainda consegue, ou seja, resgatar o seu crime contra a natureza, já o não alcança o professor Persikov, três anos depois, ultrapassado pela incompetente burocracia e o cego autoritarismo político, crescentes, pagando com a vida a sua imprudência. O alerta alegórico é bem claro, sendo evidente o desejo e a intenção de Bulgakov de satirizar severamente todos os exageros e fraquezas da nova ordem social e política saída da Revolução, através de diálogos, peripécias, situações do quotidiano bem elucidativas.

                                                                                                                       


DOIS LIVROS

Quem sou eu, para os aconselhar? Que importa? O saber não ocupa lugar. Ei-los:

SOLARIS (1961), de Stanislaw Lem (1921-2006), polaco. Livro de ficção científica, com tradução directa do polaco.

Porque é que MARX tinha razão (2011), d e Terry Eagleton (n.1943), inglês, Distinguished, professor de Literatura Inglesa na Universidadede Lancaster, filósofo e crítico literário


20 de março de 2021

Literatura de ficção científica - 5

 AELITA

Aelita, de Aleksei Tolstoi é o primeiro grande clássico da literatura russo-soviética de ficção científica. O escritor escreveu-o fora da pátria russa. Tendo partido para Paris com a família, em 1919, e indo instalar-se, dois anos depois, no outono de 1921, em Berlim, foi nessa cidade que escreveu o seu romance marciano.                                                                          Aelita foi publicado em livro, em 1923, já com o escritor regressado ao seu país, o que aconteceu em agosto desse ano, ultrapassadas que foram algumas barreiras psicológicas e culturais, de classe, que o envolveram e afligiram.                                                                    Aelita é uma utopia revolucionária como o são os principais êxitos da literatura de FC dessa época. Mas enquanto algumas dessas obras seguem a via do catastrofismo terrestre, a via de Aelita é a do cosmos. É. aliás, incontestável, que dois dos principais temas da literatura de FC, são as terríficas catástrofes a abalarem o planeta Terra e a conquista do espaço.                Uma viagem ao planeta Marte é o acontecimento dominante que situa Aelita na área da FC, muito embora a viagem em si seja um episódio menor do romance.                                        No dia 18 de agosto de 1923, o engenheiro Mstislav Sergueievitch Loss e o soldado Aleksei Ivanovitch Gussev partem para o espaço, em direcção ao quarto planeta solar, num foguetão planeado e construído pelo primeiro, um ovo metálico com cerca de oito metros. São eles os protagonistas masculinos do livro. Loss foge ao desgosto provocado pelo falecimento da sua jovem esposa, Gussev vai apenas em busca de aventuras. Dá-lhes réplica uma mulher marciana, e é dela o nome que ao livro dá o seu título.                                                            Em Marte existe uma só comunidade. A estrutura social e política é do tipo feudal, mas o nível técnico é em muitos domínios surpreendente, há electricidade, telefone, televisão, lanchas voadoras.                                                                                                                     Tuskub, chefe do Conselho Superior de Engenharia, órgão supremo que governa o povo de pele azul que habita o planeta, tem uma filha chamada Aelita. Uma mulher jovem… esbelta, branca e azulada… de cabelo cor de cinza… com enormes olhos de pupilas cinzentas… nariz ligeiramente arrebitado e boca grande, doce como os de uma criança… voz suave, leve como música… graciosa e leve como uma flor. Ela conta a Loss a história do povo a que pertence, descendente dos lendários atlantes da Terra, os Filhos do Céu, e das mulheres do primitivo povo marciano de pele alaranjada, os Aolos, e desvenda-lhe também os trágicos acontecimentos que ao provocarem a destruição e desaparecimento da Atlântida, determinaram a fuga dos atlantes para o espaço sideral e a sua chegada a Marte.                  O amor que explode entre Aelita e Loss, que ultrapassa o platónico e atinge a paixão carnal, é o amor entre um terrestre e uma habitante de outro planeta, uma alienígena, sendo nesse aspecto, o primeiro de toda a história da literatura mundial e constitui um dos traços mais relevantes e cativantes do romance, fortemente responsável pelo fascínio com que ainda é lido.                                                                                                                               O humor, a força, a alegria de viver e o muito realismo que caracterizam o perfil do soldado Gussev, constituem no seu todo um outro motivo de interesse, ou, simplesmente, o outro motivo de interesse de Aelita, hoje. Gussev não foi a Marte para nadar nas piscinas ou cheirar flores. Gussev aspira à união do planeta Marte com a República Federativa Russa e encabeça a revolução em Marte. Gussev salva Loss das forças retrógradas marcianas. E Gussev, após regressar à Terra, funda a Sociedade para o transporte de um destacamento de combatentes para o planeta Marte a fim de salvar os restos da sua população trabalhadora. Gussev é uma força da natureza, é um russo típico em cujo olhar cintila, permanentemente, uma expressão de zombaria e de louca determinação.                                                              A forte originalidade e o alto recorte literário, muito arredio de boa parte dos livros de FC, foram as grandes armas que impuseram, então, Aelita, junto do público e da crítica e o fizeram resistir à passagem do tempo. Aelita ainda hoje se lê com interesse e agrado, o que, aliás, não é excepção relativamente à vasta obra do seu autor. Aleksei Tolstoi foi um escritor versátil, eclético, produtivo e muitas vezes brilhante, que conquistou, merecidamente, um lugar destacado no panorama da jovem literatura soviética.                                                    Tolstoi voltou ainda uma segunda vez á ficção científica, mas, então, ao escrever, O hiperbolóide do engenheiro Garine (Giperboloid ingenera Garina, 1925), voltou as costas ao espaço e assentou os pés na Terra, imaginando uma história muito ao jeito policial negro americano, muito ao estilo do romance catástrofe. Os seus personagens são antípodas dos de Aelita: o sábio Garine, figura sinistra e maléfica, o ambicioso milionário americano Rolling, a bela aventureira Zoe Montrose, e o enérgico agente Chelga.                                                  Neste livro Aleksei Toltoi tem um verdadeiro rasgo de antecipação científica ao predizer, com o seu hiperbolóide, o aparecimento do laser. Imaginar o raio laser em 1925, e descrevê-lo, embora em termos de física clássica e certamente com erros de ordem técnica, foi de uma indesmentível genialidade. Mas, O hiperbolóide do engenheiro Garine, não fez esquecer Aelita, não alcançou nunca a projecção deste e não se fixou na memória colectiva do leitor de FC.                                                                                                                        Ambos os livros foram transpostos para o cinema, embora só a versão cinematográfica de Aelita seja ainda recordada, citada e exibida (1). O filme data de 1924 e foi produzido com grande aparato e publicidade pela Mejrabpom-Ruch, de Moscovo. A realização foi entregue Iakov Protazanov, cineasta veterano com provas já dadas, no antigamente tzarista, que regressara do seu exílio em Paris, e o guião ao realizador Ossep e ao dramaturgo Aleksei Fajko.                                                                                                                                    Protazanov e os seus argumentistas reduziram ao mínimo a aventura marciana e inventaram uma história quase completamente diferente da do livro. Como filme de FC foi uma completa desilusão, apesar dos sugestivos ambientes construtivistas marcianos. Mas como filme temático de cariz social também não convenceu, mostrando-se sempre pesadão, confuso, desinteressantemente retórico.                                                                       Voltando à literatura e para finalizar, assente-se que Aelita foi um livro extremamente influente, que teve seguidores e imitadores. Operação Vénus, já citado, cuja intriga, no fundamental, pouco difere, é um exemplo dessa influência. Só que a heroína do planeta cor de laranja, chama-se Noella, possui olhos de felino e tem a beleza e a figura de uma oriental. Mas também ela não consegue partir com o seu namorado terrestre. “Durante alguns segundos os astronautas puderam ver um ponto escuro no planeta: Noella exausta, olhando o espaço..."                                                                                                                   (1) Aelita esteve no Fantasporto 87 e, posteriormente, no Fórum Picoas