No passado
dia 17 de fevereiro inseri, aqui, no Manojas, a INTRODUÇÃO, do texto em título,
texto que tenho mantido, ignorado e engavetado. Resolvi, agora,
avançar e dar também a lume o primeiro capítulo dele. Ei-lo:
DA
MONARQUIA No Portugal monárquico, a literatura
policial, sem tradição, existiu, embora sem grande destaque ou qualidade. Os
antecedentes foram as más traduções, quase sempre do francês, dos contos e
romances góticos, e depois, influenciados por tais textos, o teatro de horror e
a novelística negra. As primeiras obras, com características que faziam
adivinhar a futura ficção policial, encontram-se à volta do início da segunda
metade do século XIX. Exemplo disso são: os dramalhões, Os dois renegados e
O homem da máscara negra, ambos de 1839, de Mendes Leal (1818-1886); os
romances, Paulo, o montanhês, de 1853, e O génio do mal, de 1856/7,
de Arnaldo Gama (1828-1865); Mistérios de Lisboa, de 1851, e A mão do
finado, de 1853, de Alfredo Possolo Hogan (1830-1865); a peça teatral, O
castigo da vingança, de 1862, e os contos, O punhal de Rosaura e Os
três canibais, de 1866, A febre jogo, A vestal, Honra
antiga e J. Moreno, de 1867, de Álvaro Carvalhal (1844-1868); e
porque não, O esqueleto, de 1844, Anátema, de 1851, Mistérios
de Lisboa, de 1853, e Livro negro do Padre Dinis, de 1855, de Camilo
Castelo Branco (1825-1890); assim como, também, embora já algo afastado do
perfil desse pequeno grupo, aquele que é considerado, com maior ou menor
aceitação, o primeiro romance policial português: O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA, de Ramalho Ortigão (Porto,1836-Lisboa,1915) e Eça de Queiroz (Póvoa do Varzim,1845-Lisboa,1900)
Foi publicado
em folhetim no jornal, Diário de Notícias, entre 24 de Julho e 27 de
Setembro de 1870, tendo a sua divulgação sido feita através de cartas,
supostamente relatando acontecimentos verídicos, enviadas, gradualmente, para a
redacção do jornal, doze anónimas e uma décima terceira, a última, em que os
seus autores se identificam e confessam, não há um só nome que não seja
suposto, nem um só lugar que não seja hipotético. Muito resumidamente,
porque a saga é longa e tem ramificações, tudo começa com o rapto, ocorrido na
estrada de Sintra, de um médico e do amigo que o acompanhava, por quatro encapuzados
que os levam para uma casa desconhecida. Nesta casa encontra-se um homem
inanimado, que os raptores sabem ser um oficial inglês, e o que eles pretendem
é que o médico lhes confirme a sua morte. Entretanto são surpreendidos pela
chegada de um jovem que, aparentemente, ia com o propósito de esconder o cadáver,
pelo que se torna suspeito de ser o assassino. O jovem confessa a intenção e
esclarece o mistério. A morte do oficial tinha sido acidental. Fora a condessa
de W., prima de um dos raptores e amante do inglês, que, ciumenta, desconfiando
que ele era casado e querendo vasculhar os seus papéis, tentara adormecê-lo com
ópio, mas a dose fora excessiva. A condessa é chamada à casa onde estão os
raptores, os raptados e o jovem, e confirma o sucedido. Acabam todos por acordar
em enterrar o pobre oficial e manter tudo em segredo. A condessa recolhe-se a
um convento. Catorze anos mais tarde, com o
romance já editado em livro, os seus autores, sem repudiarem o romance
partilhado por ambos (“nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se
do seu trabalho”), produto de uma mocidade saudavelmente indisciplinada e
rebelde, reconhecem, sem pejo, que ele é execrável (“porque nele há um pouco
de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico
lhe deveria tirar”). Mas sensíveis à simpatia que o público lhe tem
demonstrado, só veem razões para saudar e autorizar a sua reedição. As
extraordinárias peripécias, supostamente ocorridas à volta de Sintra, comoveram
e assustaram quem durante aqueles dois meses avidamente leu o Diário de
Notícias, e nelas acreditou. Mas, infelizmente, parece não terem motivado
os nossos escritores para a literatura policial, pelo menos durante os trinta
anos que faltavam para o fim do século, dada a escassez de obras que a representam. De tal penúria, destaque-se, no entanto, uma excepção: Francisco Leite Bastos (Lisboa, 1841-1886). É de supor
que a leitura de, O mistério da estrada de Sintra, minimamente
incentivou o escritor para o género policial que cultivou, (que o não tenha
lido, ou sequer conhecido, é impensável), ele, que na altura da publicação,
tinha vinte e nove anos e era colaborador do Diário de Notícias. Francisco
Leite Basto teve uma vida (1571-1632), de quarenta e cinco
anos, marcada por diversas extravagâncias, frenesins e empreendimentos mal
geridos, que lhe dissiparam duas pequenas heranças, primeiro a do pai, depois a
da mãe. Com alguns estudos, mas sem
qualquer curso, a sua paixão era escrever e, assim, aos vinte e poucos anos,
resolveu passar a viver da escrita. Daí resultou uma obra vasta, diversificada,
de crónicas e contos em jornais e revistas: Crónicas das pequenas misérias,
Contos da minha lavra, Primaveras de Cintra, Bernardices do século, Romances
contemporâneos, Fantasias da mocidade; mas também romances: Sapatos de defunto e A calúnia; e
peças de teatro, as comédias: Consequências de uma inicial, Malditas cartas,
O número 13, e os dramas: As glórias do trabalho, os trapitos de Lisboa,
Honras do pobre, Dois contos por dia, Abençoados infortúnios, O profeta, O anjo
do lar, Os voluntários da morte, Lágrimas de redenção, A pena de morte. Mas
Francisco Leite Bastos, se ainda hoje é recordado, é devido às suas obras de
cariz policial. Por elas é considerado um dos precursores da literatura
policial portuguesa. Registamo-las, ressalvando, desde já, que as quatro
primeiras, na verdade, mais judiciárias que policiais, são a dramatização
romanceada da vida de quatro
personagens reais, dos seus crimes e das punições que sofreram. O
crime do Corregedor: Gabriel Pereira de Castro (1571-1632), presbítero,
desembargador e corregedor do crime, nesta última qualidade condenou à tortura
e à morte Simão Lopes Solis, acusado de ter roubado objectos sagrados de Santa
Engrácia, crime de que mais tarde se soube estar inocente. A vítima seria
amante de uma freira por quem o corregedor se apaixonara, e teria sido esse
facto que influiu na sentença cruel e injusta. A má consciência perturbou
mentalmente os últimos anos de vida do corregedor. O crime
de Mattos Lobo, de
1870: Mattos Lobo, seminarista, pertencente a uma família conservadora e
miguelista, de mentalidade exacerbadamente romântica, apaixonou-se por uma sua
tia por afinidade, mais velha, mas de grande beleza, francesa, viúva, e
vivência liberal. Por não ser correspondido, louco de ciúmes, num desvario,
matou a tia, as duas filhas dela, e a criada. Condenado à morte, foi executado por
enforcamento, no Cais do Tejo, em Lisboa, no dia 16 de abril de 1842. Foi a
última execução em Portugal, apesar da abolição só se ter verificado em 1867. Os crimes de Diogo Alves, de 1877): Diogo
Alves, galego, nascido em 1810, no bispado de Lugo, ainda rapaz, veio para
Lisboa. Tendo trabalhado em várias casas de gente abastada, foi moço de
cavalariça e trintanário, mas acabou por ser despedido por agressividade e mau
comportamento. Analfabeto, desempregado e com má fama, enveredou pela
ladroagem, pelo banditismo, tornando-se um facínora de maus instintos que
assaltava as suas vítimas no Aqueduto das Águas Livres, local que escolheu para
actuar, roubando-as e atirando-as depois do cimo do mesmo. Preso e condenado à
pena de morte, foi executado em fevereiro de 1841. O
incendiário da Patriarcal: Alexandre Franco Vicente, por três vezes, pegou
fogo à Patriarcal, para esconder os roubos que nela praticava. A primeira, em
10 de maio de 1769, quando ela se situava na que é hoje a Praça do Príncipe
Real, a segunda no dia 31 de outubro de 1771, fora ela para o convento de S.
Bento, onde actualmente se situa a Assembleia da República, e a terceira, cerca
de um ano depois, mudara-se a Patriarcal para S. Vicente de Fora. Suspeito, devido
à missão de armador que tinha na igreja, fugiu, mas acabou por ser preso e
condenado à morte, depois de ter confessado os crimes. Morreu na fogueira, no
local do primeiro incêndio, em 1773. As Tragédias
de Lisboa, de
1878/9: Uma interminável e clamorosa saga, em quatro volumes, onde sobressai um
personagem sinistro em A corda do
enforcado Wassily. Os títulos dos seus vários capítulos dão uma ideia da
obra: O homem demónio, Os invisíveis de Lisboa, Proezas de Satan, Pacto do
crime, Nas esferas douradas, O testamento do milionário, O clube das gravatas
lavadas, O cadáver do Rio Seco, Proezas de Wassily, O segredo do Maçon, As
memórias do finado, Glória do amor. As Maravilhas do Homem Pardo de, 1876:
Outra extensa saga, relatada em três volumes, verdadeiramente rocambolesca,
pois dá continuação à última aventura de Rocambole, relatada em A corda o
enforcado, último episódio do livro, Os dramas de Paris, de Ponson
du Terrail. A obra foi publicada como se o autor fosse o escritor francês e
Leite Bastos o responsável pela tradução. Para de além de Leite Bastos, é ainda de mencionar:
de Estevão Gonçalves de Castro Barreiros, a peça teatral Crime e Punição, de 1874;
de Casimiro Tomás Chaves, Mistérios
da Polícia Civil da Nova Companhia do Olho Vivo e dos Gatunos e ratoneiros de Lisboa, de 1879; de Fialho de Almeida (1857-1911),
o conto O roubo, de 1881; de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921),
sob o pseudónimo Valentina Lucena,
Literatura criminal, de 1888; de
Gervásio Lobato (1850-1895, os romances, Os invisíveis de Lisboa,
de 1886/7, Os mistérios do Porto, de 1890, O grande circo, de 1893), e
a peça teatral, Comissário da
polícia; de Raul Brandão
(1867-1930), a novela A morte do
palhaço, de 1896; de Eduardo
Barros Lobo (1857-1893), sob o pseudónimo de Beldemónio, o conto, O cadáver, de 1896; de João Chagas (1863-1925), O crime da sociedade, de
1897; de Francisco Teixeira de
Queirós (1849-1919), sob o pseudónimo de Bento Moreno, o conto, A vingança
do morto; de Oliveira Mascarenhas (1847-1918), Crimes célebres e Contos
e casos; de Eduardo Fernandes (1870-1945), Galeria de criminosos
célebres em Portugal, de 1896/8, em três volumes; e ainda As memórias do
chefe Jacob, uma série de entrevistas de Rocha Martins (1879-1952), ao
próprio chefe Jacob, polícia conceituado, publicadas pela Ilustração Portuguesa,
entre 15 de julho e 16 de Setembro de 1907, e Os mistérios da Parreirinha (Romance do Juízo de Instrução Criminal), de 1908, de Pedro Reinal. Em fevereiro de 1908, deu-se o regicídio, o
rei D. Carlos e o seu primogénito, o príncipe Luís-Filipe, são assassinados,
pelo que subiu ao trono D. Manuel, filho mais novo de D. Carlos, que viria a
ser o último rei de Portugal.