20 de maio de 2020

Os livros da minha vida (5)

Tenho três escritores portugueses de ficção e três de não-ficção em lugares de honra na minha memória: Camilo, Aquilino e Saramago, Vasco e Vitorino (ambos Magalhães), e Helder Macedo. Sou um leitor compulsivo, já o tenho dito e repetido, não se vão os meus leitores (?) esquecer, mas presentemente, já leio pouco, mas quando, sorrateiro, o apetite me surpreende, é para eles, para o passado que me volto. O futuro já não me tenta e o presente é o que é. Tenho à volta de três mil livros espalhados pela casa, já foram mais, e não são todos, já se vê, de origem pátria. Esses outros os identificarei mais tarde, se o destino o permitir. Perguntar-me-ão: leu-os todos? Cada um deles, integralmente, nem a mim próprio o juro. Mas em todos peguei, folheei, consultei, avaliei, sim. Não é o primeiro, não foi o último, nem fazia parte da camiliana que o meu avô me deixou. Não é dos mais badalados, não é uma obra-prima, alguns dos meus leitores, se algum tiver, nunca dele terão ouvido falar. Encontrei-o por mero acaso, chama-se, “Maria da Fonte”. Foi o nome, antes do de Camilo, que me despertou. Passo, melhor dizendo passava, que a idade não perdoa, todos os dias, pela figura dessa mulher, evocada em estátua no jardim oficialmente baptizado de Teófilo Braga, mas por todos conhecido por Jardim da Parada, centro do bairro de Campo de Ourique. Na sua folha de rosto pode ler-se que o livro foi escrito “a propósito dos Apontamentos para a História de Revolução do Minho em 1846, publicados recentemente pelo reverendo padre Casimiro celebrado chefe da insurreição popular”. É uma biografia, ao contrário da intenção inicial do autor, mais histórica que romanceada, centrada numa mulher conhecida por Maria da Fonte e na sua acção revoltosa ao tempo da chamada guerra da Patuleia. A quem alie o prazer de uma boa prosa à curiosidade histórica, aconselho a ler o “Maria da Fonte”, se é que ainda é necessário aconselhar alguém a ler um livro de Camilo Castelo Branco. À excepção de Camilo, eram todos do meu tempo, embora mais velhos. Sou o sobrevivente. Pessoalmente, só conheci Saramago. Conheci-o muito antes do 25 de abril, muito antes da sua celebridade, sem intimidade. Fazíamos ambos parte de um grupo de incipientes jogadores de ténis que nas manhãs dos fins de semana se reuniam no Estádio Nacional para bater nas bolas o melhor que sabiam. Eu era dos mais e ele dos menos assíduos. Depois da Revolução encontrámo-nos meia dúzia de vezes, num ou noutro evento. Estávamos ambos do mesmo lado da barricada. E foi logo em 1975, quando li o seu poema em prosa, “O ano de 1993”, que me tornei admirador incondicional da sua escrita. Até hoje, até ao “Último caderno de Lanzarote”. Sei quem torça o nariz à sua obra, mesmo depois do Nobel, porventura ainda mais devido a ele, por razões político-ideológicas, por iliteracia, por mera inveja, e também pelas vírgulas. Não esqueço uma viagem à Escandinávia onde, já não sei se na Noruega ou na Suécia, ao interpelar a guia, pelo facto de ao falar dos prémios Nobel nunca mencionar Saramago, ela explicar-me que tal atitude era devida a que a referência ao escritor nem sempre era recebida com simpatia por alguns visitantes portugueses. Espantoso, não? Não tenho as obras completas de qualquer um dos seis, mas de certeza tenho os mais importantes livros de cada um deles, e mais alguns. Seria despropositado citá-los a todos, vou apenas escolher dois de cada um deles, os que pela beleza e rigor da escrita, pelo valor e sugestão dos temas, mais me cativaram: De Camilo Castelo Branco, “Memórias do cárcere” (1862) e “O sangue” (1868); de Aquilino Ribeiro, “A casa grande de Romarigães” (1957) e “Quando os lobos uivam” (1958); de José Saramago, “Ensaio sobre a cegueira” (1995) e “Todos os nomes” (1997). De Vasco de Magalhães-Vilhena, “O problema de Sócrates” (1952) e “António Sérgio , o idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa” (1964); de Vitorino Magalhães Godinho, “A crise da História e as suas novas directrizes” (1947) e “A expansão quatrocentista portuguesa” (2ª edição, 2008); de Helder Macedo, “Camões e a viagem iniciática” (2013) e “Camões e outros contemporâneos” (2017). A publicação do livro sobre António Sérgio, de Magalhães-Vilhena, levantou grande polémica, com algumas vozes desagradadas. Julgo que tal até lhe foi favorável, deu-lhe valor e importância. É na minha modesta opinião um estudo de grande profundidade e inteligência, que confirma o alto nível intelectual e filosófico do autor. A mim obrigou-me a reler os ensaios de Sérgio, o que ainda hoje não, não é, uma perca de tempo. Nunca será, pelo contrário. Para terminar, para quem estiver interessado no tema, aconselho a leitura de dois artigos publicados na muito saudosa Seara Nova: “Para a revalorização crítica da cultura nacional”, de Rogério Fernandes – Seara Nova, nº 1435, de maio de 1965. “Homenagem a Sérgio”, de Victor de Sá – Seara Nova, nº 1441, de novembro de 1965.

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